Ipanema na mira
Será?
Caríssimos, ando preocupada.
Bombas, assaltos, balas perdidas, doenças, explosões. Arrastões. Loucos armados que matam centenas.
A impotência coletiva diante da covardia acaba nos fazendo medrosos demais. É grande a sensação de desproteção. Minha mente anda ocupada pelo medo.
Ando apavorada. Tão apavorada que tenho medo até de temer em vão.
(não tenho medo de amar em vão não. Amar nunca é em vão)
Mas esse estado de alerta constante é um desperdício de adrenalina, meu compadre. Entro no ônibus e temo o assalto. Não fui assaltada. Temi em vão.
Em vão? Não. Por massificação de ideias mesmo. Temos sido treinados para desconfiar. Problemaço, pois onde termina o medo e onde começa o preconceito? Temo o negro jovem e não temo o homem branco de meia-idade. Temo o mendigo e não temo o executivo. No entanto, todos podem, em tese, estuprar, aliciar, e outras misérias. Escolho alguns para me afastar e outros para papear. Quer preconceito maior que este?
Mundo cruel o nosso.
Tiraram nosso sossego e privaram-nos de nossas predileções. Por exemplo: sempre encantou-me a cultura árabe. Sua estética rebuscada, sua riqueza de detalhes, suas mil e uma noites, seus provérbios, seus mosaicos, suas lendas. Seus nômades. Depois de tantas bombas mundo afora, acrescentemos um negativo à essa encantadora lista: seus terroristas. Não posso avistar um vendedor de esfiha que desconfio. " - Será mesmo refugiado? Será do Bojo Karan?", penso.
A vida testa nossas reações, e me presenteou então, com novos vizinhos. Árabes puros sangue.
Sim. Um dos apartamentos do pacato prédio onde resido foi alugado ou vendido e eles estão lá. Vestidos a caráter ( ou quase), uma família inteirinha. Pai, mãe, criança maior, criança pequena e bebezinho.
Meu pseudo sossego acabou.
Temos ampla variedade de terráqueos no prédio. Portugueses, índios, negros. Uma russa. Portadores de necessidade especial, portadores de down, nordestinos, judeus, espíritas, evangélicos, surfistas. Intectuais, policiais e por aí vai. São 56 apartamentos e custa-me lembrar de dois flats com o mesmo perfil de moradores. Uma homenagem à diversidade e à convivência pacífica entre as tribos.
Mais ou menos. Agora temos os árabes.
Fechados. Resistem a um cumprimento. Falam entre si em árabe. São diferentes dos descendentes de libaneses que conheço, muito amigaveis e hospitaleiros. A pele deste grupo é bem escura e esverdeada. O tom de voz é seco. Ríspido. Nada da simpatia e eloquência dos turcos da Rua da Alfândega; a mulher é calada e não cruza o olhar com o meu. Usa roupa comum, e não tem os enfeites da minha fantasia. Traz a cabeça envolta numa echarpe escura. O homem é sério, calou-se quando entrei. A criança maior é uma criança, gente, que eu queria saber o nome, ouvir seu riso, fazer alguma gracinha, mas esse infanto foge também de meu olhar. o menor apertado junto à mãe, parece ter medo da porta pantográfica, e de mim.
Corajosa que sou para diversos medos, entrei. Os andares que seguiram foram de silêncio e mal estar. Sinto que em minha legging justa e batom carregado eu os incomodo. Eles me incomodam também com tamanha sisudez. Eis aí o ponto que é necessário refletir. As mútuas diferenças ofenderam-se. Desconfianças. Eles perceberam. Ofenderam-se. Quem não se ofenderia?
Sou mesmo muito proviciana. Tenho-me em conta de moderna, cabeça aberta, up dated. Tudo mentira. Ando desconfiada que nem uma caipora do mato. Se sinto cheiro de queimado, acho que vem da casa deles. Se ouço barulhos, acho que vem da casa deles. Tem um carro carissimo. "- Da onde vem o dinheiro? ". Penso em tráfico de armas. Ai nāo, meu prédio seria muito simples. Bem, pode ser para despistar. Cochicho com o porteiro. A vizinha israelita junta-se a mim: "- Não quiseram entrar no elevador porque eu estava", afirma, com a dor dos séculos de guerras. Minha mãe ofendida pois não retribuem seus cumprimentos. De fato, os cumprimentos de mummy são um tanto efusivos demais ate' para a nossa descontraida cultura.
Que vergonha de mim. Em nome de acusações semelhantes cometeram-se crimes horrorosos na história da humanidade. Estudei tanto para derrapar feio assim na armadilha do preconceito. Tento convencer-me que não podemos julgar ninguém por sua origem. Em seguida me lembro do descendente de afegãos que matou 50 gays no ataque de Orlando. Tento pensar que somos todos irmãos. Sim, mas Caim traiu Abel.
Estamos nas mãos de Deus, afinal, em nossa ignorância e pecado. Que nos proteja da guerra, do sofrimento, e de toda a sorte de preconceitos. Que com sua imensa piedade nos ensine a perdoar o conhecido e o desconhecido. Conspirar, julgar e condenar? Sabemos decor.
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