sexta-feira, 2 de julho de 2021

Tempo tempo tempo tempo

Copacabana esta semana. Arpoador semana passada. Ipanema todo dia

    O tempo que nos resta   Foto: Web


     O tempo nos sobra nestes tempos pandêmicos. Aquele tempo que não tínhamos para nada, lembra? Aquele que perdíamos em engarrafamentos homéricos, em viagens de feriadão. Aquele que perdíamos para ir à praia na Barra aos domingos. Aquele tempo que perdíamos nos bares, festas, no samba, nos churrascos com os amigos... Aquele tempo todo de filas de teatro. De filas de museus, horas sem fim em frente aos Centros Culturais. Ah sim, e o tempo vagabundo que perdíamos nas ressacas, curando as ressacas, lembram? Aquele tempo que conversámos sem fim, quando havia algo para conversar? Porque pandemia não é conversa, gente.  É praga mesmo, e aqui no Brasil, vem com as 7 pragas do Egito. 

    Muito bem, já que não perdemos mais tempo com essas coisinhas do passado, e portanto hoje o temos, de sobra, longo, farto, há que inventar-se o que fazer com ele. Que sorte! O nome disso é esperança.

    Ocupar seu tempo com ação, é uma bruta forma de esperança. É o oposto da depressão, da falta da ação, da falta da vontade da ação, ou do desgosto por qualquer ação, melhor dito. O desgosto pelo tempo a passar, sem sentido, inútil, tempo oco, arrastado, inexplicável; esse desgosto é um azedume do tempo. È um azedume pela vida.

    Porque um textinho tão amargo? os tempos estão amargos, caríssimos. Amargos como o fel. Em todo o canto há dor, tristeza, falta tanto para tantos, e esse tanto aumenta assustadoramente. Em meio ao desgosto que me ronda, tomo coragem e levo minha dor ao mar. Diz o ponto que Iemanjá toda dor leva para o mar.  Bem, houve um tempo em que eu tinha mais fé. Acho que os orixás também estão sem tempo, ou desgostosos conosco. Cansaram do Brasil, essa terra de teimosos do sofrimento. Gente do céu, se é para teimar, que seja para teimar em ser feliz. Mas não. Aqui é uma repetição sem fim de teimosias tão tão tão cruéis. Demos um tempo na felicidade, tudo indica.

    Máscara, óculos, chapéu. Levo minha água e meus nuts, assim não precisarei falar com os ambulantes, que gritam sem máscara todo o tempo. Esse é o nosso tempo: tempo de evitar os seres humanos. Veja lá se isso não é de dar desgosto em qualquer um.

    Escolho um oásis. Meio vazio, perto do mar, ai que delicia, penso que enfim terei um tempinho de paz. Criancinhas correm perto de mim. Mais perto, mais criancinhas, mais mamis e papis, e mais perto. Uma festa de aniversário, à cotê de moi. Tempo de festa, meu bem.

    Umas 20 criancinhas, felizes, agitadas, seus adultos nem tão felizes e bastante agitados, reunidos para um niver a beira mar. Lindo. Ninguém de máscara. Beijos, abraços, muitas conversas, fotos, correrias. Ninguém de máscara. Teve de um tudo. Ninguém usou uma mísera máscara. Parabéns, cachorro quente, brindes fofos. Vesti-me de grande antipatia pelos adultos tão abraçadinhos para os registros, e tão sem máscara. Os adultos são sempre os culpados, deveríamos deixar os cargos no governo para as crianças. Os Grandes estão sempre errados, é muito fácil descobrir isto. Qualquer criança sabe. Para estes convidados, especificamente, neste momento não há pandemia, não há 500 mil mortos, não tem nada disso não, e inclusive também não deve haver recessão. Há uma festinha, domingão na praia, vamos e vamos mesmo, e este é o Brasil minha gente - regras que se quebram quando é chato cumpri-las. 

Tirei minha crítica, guardei na bolsa de palha, e busquei pelo aniversariante. Ariel, seu nome. Curiosamente, o nome do personagem Pequena Sereia, no clássico Disney, acometido pela dúvida entre viver no mar ou na terra. Nosso Ariel da vida real me pareceu acometido por várias dúvidas - comer ou brincar, posar ou brincar, cumprimentar mil tios ou brincar. Tempo de brincar, pelo amor de Deus, Mãe.

Apurei o ouvido, fingi ler o jornal. Tios comentavam como era bom ver o pequeno tão cheio de saúde depois de tudo que ele passou.

Pára tudo.

Estamos nesse tempo. A saúde é jóia rara, uma benção, uma sorte, um privilégio. A ameaça à saúde de uma criança, pelo que quer que seja, é um absurdo da Criação, uma incoerência do Pai, e se esse quadro se reverte, sentimos a alegria dos resgatados com vida - toda a alegria do mundo no mesmo sorriso. Alegrei-me com eles, até esqueci que estavam sem máscara. Depois lembrei, fechei a cara debaixo na minha máscara e voltei ao fingimento do livro.

A festinha prossegue, animadíssima, por conta dos miúdos. Um filme de suspense e pavor por conta dos pais, amedrontados com a eminente possibilidde de que seus pequenos se jogassem descontroladamente na água revolta; o mar não estava mesmo para peixe. Depois de duas horas e milhões de perdigotos espalhados, eles se foram. Deixaram os rastros ali na areia. Mais do Brasil: dificilmente recolhemos nosso lixo a tempo e a hora.

Fiquei só, em silêncio, lembrei do tempo em que meus filhos eram pequenos. Lembrei de quando eu era uma jovem mãe, corajosa, apaixonada por meus filhos, e tudo que eu queria era que fossem saudáveis, seguros e felizes. Ouvi suas risadas, lembrei das noites com febre, do deveres do colégio, lembrei dos aniversários, cheios de doces e amiguinhos.

Meus filhos não mereciam essa pandemia, esse governo, esses lamentos. Nenhuma criança merecia. Os adultos mereciam. Escolheram isso. Nem todos na verdade, mas em tempos injustos, todos pagam pelo que alguns escolheram.

Que esse tempo desenrosque de nós e passe. Parece agarrado em nossas pernas, queremos andar, ele nos puxa, gosmento, nojento, grudento.

Que esse pesadelo acabe. Que a gente possa falar com os humanos, abraçar os humanos, que a gente volte a viver uma humanidade que vem se perdendo em egoísmo e corrupção. Que esse pequeno Ariel comemore muitos anos com saúde, em muitos lugares, com segurança, com alegria. Que a gente guarde as máscaras no museu de grandes novidades, como dizia no poeta.

Vacina para todos, no menor tempo inimaginável. Trabalho e esperança para todos, no menor tempo e no menor espaço. 

Antes que a amargura corroa esse tempo, longo ou curto, mas certamente precioso - esse que nos resta.




sexta-feira, 11 de junho de 2021

O retorno

 O retorno

  

  Após anos de silêncio, volto ao blog. Releio aqui e ali. Viajo.

  Foi uma época danada de boa. Muito. Eu ia ao teatro quase todo dia. Sim. Quase todo dia. Shows também. Muitos, maravilhosos. Dança, musicais.

  O Rio de Janeiro vivia um momento de efervescência cultural. Incentivos fiscais, patrocínios. A economia carioca estava bem, ou parecia estar. Casas cheias, frequência alta, muitas opções de espetáculos.

  Eu escrevia madrugadas a fio.

  Mergulhada nesse ir e vir, nesse pasmar e espalhar, nesse círculo energético de absorção e divulgação de arte e da cultura. Mergulhada na minha percepção desse mundo encantador, passava o que via na peneira do olhar, e mergulhada e rodeada de mim,  pois tudo é espelho, caríssimos, já dizia minha tia Didi, eu vivenciei cada minuto daqueles anos com muita entrega. Gratidão, Vida, porque me fizeste intensa.

   Tudo é transitoriedade, também acrescento, como já dizia minha terapeuta Monique. Sandro Shankara, amigo de saberes indianos também encantadores, me diz que só a mudança é constante. A palavra é liberação. Deixe ir, ele explica. Doce, doce. Deixa ir.

   O amor pelo teatro nunca saiu de mim, contradigo esses lindos. 

   Talvez eu tenha me fechado no meu próprio camarim, que a vida é um palco,  (Isso aí já dizia muita gente, e como é interessante essa autoria mesclada de palavras sábias... Libertário atribuir verdades a autores diferentes. Dilui esse monopólio ocidental do saber.) e para todo palco há um camarim.

   Mas, sabem. Veio 2020. Sabem. Sabemos. E o valor do tempo modificou-se. Temos medo de não haver mais o nosso tempo. A efemeridade é tangível, próxima, toca sua campainha e você não pode fingir que não está.  Há um grande medo coletivo de não haver outra oportunidade. 

E nesse 2020 em que fomos obrigados a receber a visita do medo, fazer um cafezinho e  olhar para dentro de nós mesmos, querendo ou não, gostando ou não, pulsa o medo dentro e fora de casa, dentro da máscara, dentro da incerteza de ser brasileiro no país de Bolsonaro. Dentro da economia quebrada, de governadores presos, de fome e desemprego. Olhando os números de mortos crescerem, o oxigênio diminuir,  a gente tem medo. Algo entre impotentes e incrédulos. E com medo. E a mata queimando. E os negros sendo mortos pelos racistas. E os LGBT sendo mortos pelos homofóbicos. E as mulheres sendo espancadas e tantas crianças vítímas de violência.

Medo. Solidões. Uma sensação de que as luzes se apagaram, e você já não encontra seus sapatos no seu próprio quarto. E vem o medo do escuro.

   O medo é uma grande solidão, caríssimos. Uma ameaça premente de infelicidade. Temos a impressão de que estar a dois ou a três nos protegerá de muitos males,  é um pensamento representativo de uma época, e bem assustador. Aqueles que ficam sós parece que estão fadados a ter medo e outras coisinhas mais pesadas. O corporativismo de nossos tempos, onde nos aglutinamos para nos proteger, traduz bem a ponta desse pensamento.  Um segredinho: boa companhia, pertencer a um time, a um grupo, é ótimo sim, mas não protege ninguém de si mesmo, e muitas vezes, ameaça o ego e a criança interior de cada um de nós. As reações são muitas. Cuidado. Conviver é algo perigosíssimo. Muito se revela e nem sempre estamos preparados.

Então veio 2021. O contexto começa a se iluminar pela vacinação, tardia, torta, parida a fórceps, mas uma vela se acendeu no escuro do seu quarto, caríssimo. Não a apague. Vacina já.

Voltar a escrever me cutuca. Persiste. Vai e volta. É como o nome de quem se quer, como o sabor do doce que a dieta não te permite, como o desejo de vacina, de liberdade, de trabalho justo. È um bem que me faço, nesse mundo que tanto mal quer ser fazer.

Mesmo que não leiam, mesmo que não concordem, mesmo que não gostem.

Percebi, que como meus filhos, as palavras vem de mim, mas não me pertencem.

São minha voz fora de mim, e já não quero ignorar seu sussurro. Quero presenteá-las com a liberdade que os último ano nos tomou.

De todas as solidões que tenho - e tenho várias - escrever é para mim, a melhor forma de encarar o medo.

Como disse um ex, fofo - vai, Bettina, que o inimigo se enfrenta de frente. Não sei se foi ele que disse, ou algum professor, ou algum político. Há falas iguais em bocas diferentes. Há sábios em muitas castas,

Há textos diferentes na mesma boca.

Que a minha diga palavras de esperança, principalmente para mim mesma.

Gratidão Vida, porque o pessoal aí ainda não desistiu de mim. Devo ter algo de bom para dar a esse mundo. Algo de bom para dar a mim.

Voltei.