Leblon
É fundamental Ser Imoral
Clarice Niskier, óraculo dos deuses, em A Alma Imoral
Baseado no livro de Nilton Bonder
Direçao de Amir Haddad
A amiga mais transgressora que tenho leu esse livro. Náo sei se leu o livro e foi incitada por esta leitura a avançar no campo das transgressóes, ou se o campo das transgressóes fomentou a leitura do livro.
Disse-me: " você precisa ler". Náo li.
A segunda amiga mais transgressora que tenho leu esse livro vinte vezes e viu a peça dez vezes.
Disse-me: "Hoje você vai a peça." Adoro que mandem em mim. Fui.
Vi o óraculo dos deuses, e chama-se Clarice Niskier. Clara como a brancura simbólica de seu corpo mortal, clareou minhas idéias. De suas máos nasceram gestos, pequenas danças, volteios, pequenos pássaros. Máos e braços hipnóticos, como cobras, como rios, como serpenteios, como flores que nascem, desabrocham, orvalham, descansam. Màos vivas.
Entre gestos assim envolventes, ouvi sua voz, e dela ouvi a voz do Rabino Bonder.
Pausa aqui. Seríssima pausa. Assisti, ano passado, a uma cerimônia de Bar Mitzvah, a celebração do aniversário de treze anos dos meninos judeus e a confirmaçao do conhecimento religioso adquirido pelo menino. O rabino Bonder presidia a cerimónia. Encantei-me com sua inteligência, seu carisma, sua presença, a sabedoria de suas palavras. O agradável tom de sua voz. Vi nele um Homem religioso de alta formaçao intelectual. Admirei-o. Queria ir a seu encontro, olhar os seus olhos de perto, falar com ele, ouvir mais, estar mais, aprender mais. Confesso: comportei-me a custo. Náo fui.
Sigamos. Na peça o autor Bonder mostra que é um filósofo, conhecedor profundo das entranhas da alma humana, um cientista da alma humana, que ele classifica como Imoral. Imoral mesmo - aquele que acomete contra a Moral.
Bonder tem por trunfo de defesa de suas teorias nada menos que a história da humanidade. Foi nossa imoralidade que tirou-nos da escravidáo e mediocridade, conquistando a liberdade e a plenitude.
(Prossigo compulsivamente)
Náo posso abdicar da honrosa oportunidade de dividir com vocês, caríssimos, a revelação de sua teoria: o ser humano tem alma, e náo é a alma boazinha que nos ensinaram.
A alma é imoral e náo é errado sê-lo.
O ser humano, séculos afora, afrontou e pisoteou as bases morais da tradiçao.
Divididos que somos entre o que é correto e o que é bom, seguimos tentados pelo prazer até que tomemos uma decisáo entre a tradicáo (passado) e a traiçao (futuro).
Reduziremos a pó os ditames legais se preciso e desejado for: O bom-incorreto tem dias contados - ou se torna bom e correto, ou simplesmente se torna mau.
Valores e sentimentos precisam estar no mesmo lugar, mas originalmente náo estáo. O homem seguirá nesta tensáo, equilibrando-se e desiquilibrando-se entre o ponto dos valores para o ponto dos sentimentos.
Até que faça sua escolha e trilhe seu caminho.
Se obedecer à moralidade imposta, o indivíduo estará preso a um contrato de conceitos ocos e infrutíferos, que só a sinceridade de seus sentimentos poderá renovar.
Isto é assim, sempre foi, e sempre será.
Espanta-me que tal teoria, desafiadora, e em si mesma transgressora, tenha partido de um rabino, a quem acreditamos ser de especial dever zelar pelo cumprimento das tradiçoes. Zelar pelo seguimento às regras.
Espantei-me por equivocar-me. O rabino, em seu texto encorajador, revela o milagre da sobrevivência - a desobediência inteligente e inovadora das regras sociais, a fim de que vivamos com consciência e dignidade.
Sob este ponto de vista, é fundamental desobedecer e ser Imoral. As escrituras provam. A linguística prova. Os conceitos precisam ser aprendidos pelos seus contrários.
Eu provo que sua teoria está perfeita. Toda vez que enquadro-me à regras desfavoráveis a mim mesma, eu me traio. Sinto o desconforto da consciência culpada.
Se me castro, me traio. Se me engano, ou a outros, traio-me e traio outros. Se corrompo-me, traio-me. Se cumpro ordens cruéis, traio-me.
E volta o desconforto.
Se abandono a Bettina crítica para ser a Bettina adequada e silenciosa, traio-me.
A adequaçao à moldes que náo os de minha alma sáo a maior traição que posso cometer.
Encontrarei com isso uma imensa solidáo, pois nada, nada nada, diz a deusa, nada é pior que a solidáo de si mesmo.
A Clara Luz do Rabino fecha com a parábola do Rab Súcia, cujo único temor ao fim de sua vida é que o Tribunal Celeste possa julgá-lo por náo ter sido Súcia.
Temo então por mim.
Temo que eu mesma pergunte, que eu mesma julgue e que eu mesma me condene, por náo ter sido, inúmeras vezes, Bettina.
Nilton Bonder, Revolucionário da Alma
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