Roxy - O charmoso cinema de Copacabana
Rio de Janeiro
Cisne Negro, do diretor Darren Aronofsky
Natalie Portman
No ballet de Tchaikovsksy, " O Lago dos Cisnes", o Príncipe Sigfried encanta-se por uma donzela, Odette, vítima de terrível feitiçaria que a transformara em cisne branco. Somente se escolhida pelo Príncípe, com a condição de amá-la exclusivamente, estaria salva. O Príncipe não conseguiu. Deslumbrado pela beleza do cisne negro, concluiu que só sua amada teria tal encanto, e optou, equivocadamente, pela feiticeira, Odille. A heroína injustiçada cumpre seu destino, e o princípe desespera-se. Impotentes no amor, manipulados pelos maus deuses, estáo separados tragicamente por todo o sempre.
Nas montagens mais renomadas, Odille e Odette são interpretadas pela mesma bailarina.
Recebi uma mensagem: " - Já viu o Cisne Negro?" Senti que era urgente. Vindo de quem veio, amiga de cabeça privilegiada, de poucas e corretas palavras, mira certeira, pedi um par de asas emprestadas e voei para o cinema. Vi que as asas não tinham a mesma cor: uma branca, outra negra. Ao chegar no cinema, as asas me incomodaram. Guardei sob a poltrona, o filme vai começar.
Há uma bailarina. É Nina, personagem de Natalia Portman. Delicada e dedicada demais, mas inexpressiva. Há sua mãe, obcecada, pedófila silenciosa, repressora. Há o desafio de atuar como Rainha Cisne, papel duplo e principal do Lago dos Cisnes. Protegida pela redoma da dominação materna, faltam-lhe a vivência e a ousadia necessárias para agarrar a chance única de sua angustiada carreira. Interpretar o Cisne Branco, crédulo e sonhador, não era problema. Esse era ela, era ela da vida inteira, a Nina, a doce garotinha da mamãe bruxa. O desafio é o Cisne Negro - ardiloso, sedutor, irresistível - o lado negro e brilhante do ser, que conduz a glória ou ao abismo.
Não enxerga de onde tirar o Black Swan. Está enterrado nas suas vísceras, essas coisas nojentas que temos na barriga e que mantém nosso corpo vivo. Tire as vísceras de um ser e ele morre imediatamente. Arrancar as vísceras dos inimigos: aniquilá-los. Estão ali representadas a integridade física e moral dos vencidos. A atriz dentro da bailarina precisará justamente do impulso dos sentimentos imorais, da falta de caráter, do atrevimento que os sedutores possuem. Precisa seduzir. Precisa de luxúria, de cobiça, de vaidade. Precisa de sexo. Não tem. Outras, muitas outras, bailarinas ou não, tem, e de sobra. Quem de nós já não desejou o proibido? Muito e fortemente. Não usou de artifícios para obter o que queria? Não sentiu uma vontade de doer, de alucinar, de se rasgar? Não fosse assim, não haveria o fogo em seu olhar.
Na busca dessas referências não vividas, sem as quais seu personagem negro não convenceria ninguém, Nina enlouquece. A lucidez torna-se insuportável e dilacerante. Ansiosa e perseguida por imagens projetadas (ou não) por sua mente confusa, descobre que odeia a mãe; descobre o prazer sexual, nunca antes desfrutado, fundamental, nas mãos e na boca de outra mulher, a irreverente e talentosa Mila Kunis, que por ironia, a ameaça no estrelato. Acossada pelo desejo, é drogada e seduzida. As cenas são enebriantes; não se sabe se é sonho,se é realidade, mas é prazer, sem dúvida. Que bom. Foi provavelmente a melhor coisa que lhe aconteceu.
É preciso aqui um parênteses - o galã do filme, ainda que bastante viril, dispensa a oportunidade, desinteressado pela aparente frigidez do cisne branco. O diretor do ballet não queria mocinhas suaves para a sobremesa; somente o indomável e exuberante cisne negro saciaria seu desejo. Descartou a antiga bailarina pela idade, e a jovem pela pouca inclinação para a coisa. Como os demais homens terrenos, dispensa facilmente o que não lhe serve.
Apavoro-me com tanto sofrimento. Ela sangra. A fixação pelo êxito culmina com sua alma quebrada em pedaços. Dores, dores de arrepiar, torturas, pesadelos. Bulímica, esquizofrênica, reprimida, ela paga o sucesso com sua sanidade. Imagens de terror assustam, imagens de beleza encantam.
Somos assim, aterrorizados, atormentados e belos. Temos fantasmas e adversários que nos arrancam gritos. Criados à imagem e semelhança das nossas frustrações, precisamos rasgar a carne e deixar que o sangue que herdamos escorra. Não é bonito de se ver e nem gostoso de sentir.
Tudo bem, cicatrizará, e criaremos nova pele, talvez asas.
Assisto extasiada a encarnação da ave. Os olhos rubros, as asas negras, as pernas como lanças velozes cortando o ar. Entendo porque o Príncipe Sigfried equivocou-se - todos preferimos o atropelo da paixão ao banho maria da condescendência.
Aplaudo, sou a única do cinema a aplaudir. A platéia está incomodada, mas eu não me incomodo, e rendo-me, inteira. Desejo que encontre, na eternidade, seu triunfo.
Pego as asas que escondi sob a poltrona. Parecem-me maiores, e ambas estão negras, como o carvão. Eu as quero exatamente assim.
É preciso ter sensibilidade incomum, se libertar de preconceitos e se deixar levar. Como disse minha mãe, "o povo não está preparado para um filme de piração na construção artística". Adorei. Mais a cada dia.
ResponderExcluirExcelente crítica/crônica!
ResponderExcluirHá várias pessoas reclamando do exagero existente no filme, principalmente o esforço e a disputa presentes na arte "ballet".
Definitivamente esse não é um filme pra ser visto apenas com os olhos!
Um primor/obra de arte!
Natalie Portman está um troço.
Exuberante!
Preciso ver este filme. A beleza e a perfeição às vezes podem se tornar uma maldição...
ResponderExcluirE será que no final todas nós mulheres não procuramos o lado Cisne Negro?
ResponderExcluirSimplesmente um filme para ser ruminado com muito cuidado e degustado com toda a atenção que merece. Todos temos um lado negro que às vezes vem a tona, reprimí-lo é segurar partes necessárias para o equilibrio de nossas vidas...
ResponderExcluirExcelente Crítica!!!