Rio de Janeiro,
Botafogo,
Comunidade do Santa Marta.
O CONVITE DA PRIMA.
Vista do Mirante do Pedrão, por Ana Lucia Schneider, gentilmente
O cartão postal acima só poderá ser admirado do alto do Santa Marta. Local de acesso público, mas nem por isso conhecido pela maioria dos cariocas.
Mas eu faço questáo de ir onde poucos vão. Gosto de seguir por onde quase ninguém quer ir. Nada me impede de avançar quando desejo, ainda que sob críticas ou vaias. Teimosia? Que seja.
Recebo, honrada, o convite para colaborar com o Costurando Ideais, exemplo de economia solidária do Santa Marta - comunidade onde a violência era a lei. Recém pacificada. São costureiras e artesãs que trabalham com material doado e recolhido no lixo de confecções caras.
Meu papel seria escolher e ensaiar moças bonitas da comunidade para o desfile da coleção, que marcaria uma nova fase das costurandas. A pedido de minha prima subi, literalmente, no salto e no morro.
Vamos subindo
A estátua de Michael Jackson nos abençoa,
Clicks de Ana Lucia Schneider, fraternalmente
Aqui vale uma pausa. Já fui, há décadas, aspirante a modelo. Modelo de passarela, o ballet esticou minhas costas de forma que nem um raio as enverga. Não lembrava mais dessa fase adolescente, mas prima é prima, sangue não vira água, e ela lembrou da menina que fui, desinibida e espevitada. Curioso - fui lembrada por algo de que tinha me esquecido.
Sob protesto dos filhos, da família, das amigas, aceitei feliz o convite. Contrariar os outros é melhor com um sorrisinho. Vai passar as férias trabalhando de graça no morro? Ensinando quem a desfilar? Vai alimentar esperanças falsas. Que pacificado que nada, vai se arriscar a uma bala perdida. Isso é maluquice. Sair da sua casa para isso?
A única voz de estímulo que recebi, foi a de meu amor, que apóia a ação positiva: vá. Faça a sua parte. Comece logo. Meu amor é meu amor e sempre tem razão.
Há o resultado fotografado, que mostra o possível de ser visto.
Elas arrasaram
Foto por BB
No entanto o resultado maior, e que poucos enxergaráo, deu-se em meu interior. A vida é muito, muito diferente do que nós, privilegiados pela sorte, imaginamos. Temos tudo neste mundo e mais um pouco. Temos água, luz, estamos a 5 minutos do solo, onde podemos entrar em ônibus e táxis facilmente. Onde podemos caminhar em linha reta.
Tenho mais livros e sapatos que uma dúzia de famílias da comunidade, juntas. Não sei porque isso. Nào sou melhor que eles, e tenho mais.
Mais conforto, mais saúde, mais possibilidades.
Sou mais respeitada, abrem portas e me perguntam se está tudo bem para mim.
Além disso, tenho mau humor, mesquinharia, e preguiça. Há dias em o melhor não está bom e tenho ataques e medos, e sou claustrofóbica. Tenho preconceitos. Tenho pesadelos e alergias.
Estou no topo da montanha reclamando do Sol e dos mosquitos.
Multiplicou-se o afeto em mim. Afeiçoei-me às meninas que ensaiei. Lindas e magras, tem a pele mais bonita que muitas socialites que conheço. E tem mais educação que muitos alunos de caros colégios com quem convivo. Mais elegância. Mais modos. Sonhos menos egoístas. Deslizaram como profissionais, no imenso tapete cor de cereja, cedido gentil e encorajadoramente para o evento.
Ao fim do desfile, uma repórter da rádio local perguntou-me qual a expectativa que tive com o voluntariado. Apenas ensaiar as meninas. Ensiná-las a não ter medo do público; a se imporem, a serem altivas e leves. Não sei se foi isso. Acho que comecei só para colaborar com uma prima querida e desobedecer ao padráo. Terminei ganhando muito muito mais - ganhei vontades maiores. Tenho vontade de que o governo seja outro, que o Brasil seja outro, que as ONGS sejam outras.
Que os nossos impostos, bem cobrados e bem pagos, cheguem ao seu legítimo destino.
Que a pobreza seja apenas pobreza e não tristeza,
Que a sociologia e os sociológos sejam mais eficazes.
Que sejamos todos, mais livres em nossos destinos e futuros.
E que essas meninas se imponham, vida afora, e guardem para mim, o imenso carinho que terei, sempre, para elas.
Pedra grafitada, ao lado da quadra, no Santa Marta
Foto por BB
O que muda lá do alto? Muda a perspectiva, sem dúvidas, Olhando do topo do morro, somos apenas formigas no asfalto, logo nós, que nos achamos tão grandes e importantes.
ResponderExcluirO que é preciso enxergar é que a grandeza está dentro, ter fé no ser humano e na sua capacidade de superação é grande. Costurar sonhos é enorme.
Lua.
se impor. se impor sempre. não ficar com "bunda exposta na janela pra passar a mão nela". é por aí...
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