quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Pós Carnaval

Rio
Depois do Carnaval
Mais perto
Mais quente
Mais real


Esta que vos fala, fantasiada toda vida, em click de Rogerio Schremp, gentilmente

Caríssimos, é bom ver, e é bom ouvir.

Eu ouvi moças do Rio. Moças de idades distintas, bonitas, bronzeadas, inteligentes. Moças comuns. Trabalhadoras. Moças cujo ponto forte é o sorriso, outras a conta bancária, outras o corpo perfeito. Moças cujo ponto forte é ser forte. Outras cujo ponto forte é ser fraca.

Conversa assim, pós-Carnaval, dias virados de folia e ânimos vibrantes. Dias de sol e cerveja. Neste ritmo, a conversa descambou para a batucada do coração, batucada campeã da mulherada. Aí começou o desfile, e as fantasias eram caprichadas - toda moça tem sua fantasia do Amor, como uma fantasia que sempre quisemos vestir. Aquele personagem que nos realiza. Com paetê, purpurina, peruca, luva, meia arrastão. O que melhor assentar nesta composição. Se cabe, bem, se não cabe, manda ajeitar, borda aqui, cola ali. Enfeita. Enfeita a realidade para curtir a vida, enfeita a vida com a fantasia de Amor.

Inventa que o Amor passou e que não dói mais. Quando, quando o amor pára de doer? Amor que é amor dói só de lembrar. Mas tem a capa da heroína solitária, corajosa, que enfrenta marmanjos com beijos doloridos. A capa vende no Saara, tudo bem, mas não vem explicando que vai voltar sozinha para a caverna, dormir só, sonhar só. A fantasia vai pesar no dia seguinte.

Tem a moça que veste a fantasia da apaixonada. Um sopro, um suspiro, imagina que ama, que é amada, que vive um grande amor. Não sabe viver sem amor. Acredita neste refrão desafinado que é o amor inconsistente; refrão que não rima, que desafina. A moça se abaixa para catar confetes sujos, quer reaproveitar plumas despencadas. Limpa tudo, e afirma que são novos e em bom estado para o uso. Mas não acerta no miudinho; samba de amor é para bamba. É para quem tem o samba no pé, e o amor pelas veias.

E tem aquela que ama, é amada, mas não aceita. Não, ela não merece esta simplicidade de sentimento. É preciso confusão, tumulto, para sacudir a coisa. Ela quer empurra empurra, quer briga. Quer rasgar a fantasia hoje e remendar amanhã. Deixar um rasgo à altura da coxa. Sim, fica sexy. Vamos rasgar então, brigar, discutir, estapear, morder, depois beijar. Furiosa bateria a de sua escola.

Uma diz que é mais feliz separada. Emagreceu, rejuvenesceu, e livre, pode beijar à vontade e divertir-se com a variedade de rapazes bonitos e disponíveis para esse fim. E que assim é melhor que antes, presa em um casamento de aparências. Soltou-se. Tem aventura, alegria, romance, e emoções. Ri, feliz. Está no bloco, está no pandeiro, está solta na folia.

E tem eu. Tenho samba, tenho fantasia, tenho máscara. Confete sujo, tenho confete novo. Tenho plumas do Carnaval que passou, e providenciarei novas, oportunamente. Decorei samba enredo e marchinha, e quero escolher os próximos enredos. Vou a quadra da escola e tudo mais; não temo. Já tenho mesmo os pés machucados pela sandália de prata e pelo pisoteio do bloco. Fui amarrada pelo cordão do Bola Preta, e me soltei no Boitatá. E a bateria do Salgueiro ainda esquenta no meu coração.

Tenho fantasia e tenho realidade. O Carnaval acabou, veio quarta feira de cinzas, veio a vida real, que arrasta avenida afora.
Minha fantasia para o dia-a-dia é invisível. Caiu como uma luva. Fantasia de quê? Ah, caríssimos, fantasia caprichada de quem só quer sambar em paz.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Eu voltei

Rio de Janeiro

Lindo Rio
Sorriu para mim
E eu sorrio

Eu vi e eu rio....
Click de Carla Santo Anastacio, gentilmente


Equivoquei-me.

Despedi-me do blog com palavras escorregadias. Fomos pelo Gap, as palavras e eu. Sim, eu mesma tinha escorregado pelo vão, e sido tragada, como a água que desce pelo ralo.

Mentira. As palavras não desceram. Eu não desci.

Signos, símbolos, ideogramas. Todos presos na garganta. Estranha anatomia a minha, com letras, vírgulas, sílabas e parênteses misturados à carne, sobrevivendo no interior de mim. Penso que serão digeridos; mas nunca são. Penso que serão triturados, incorporados. Não serão. Descem goela abaixo, e antes de caírem no estômago, retornam. Palavras assim agitadas como eu, que não sossegam enquanto não voam, que não se aquietam enquanto não estão ao vento...

Ficaram ocupando espaços, amontoando-se. Reagrupando-se sem sentido.

Estranhando-se como eu estranhava a mim, calada demais, muda demais, introspectiva demais.

Então sexta de Carnaval chegou e eu vi o Rio de novo.

Vi o Rio no Arpoador, e vi o mar, e vi o vento, e vi a maresia. Vi tanta gente, e tanta gente me viu; mas viram a casca, a pele, o verniz - não viram o coração, batuque mudo, batuque duro, batuque surdo. Viram o que é visto, enquanto eu não. Eu via o que é só sentido, e por isso mesmo não pode ser ignorado. O invisível é sempre mais forte e determinante que o superficial: e as palavras saíram, boca afora, bumbo afora, mar afora.

Saíram de mim, de dentro, de uma vez, e o nó da garganta se desfez.

Assustei-me, eram palavras demais. Eram saudações, sussurros, segredos, e que farra deviam fazer dentro deste corpo estranho. Letrinhas ondulantes, sentimentais demais, temperamentais demais.

Era o grito de Carnaval entalado na garganta. Que potencial.

Era a vida entalada, na forma de samba, de folia, na forma colorida de alegria.

Ai. Eu precisava soltar a voz de novo. Urgiu.

Soltei. Falei.

Desafoguei, desentalei.

E assim aliviada eu dei o grito de Carnaval, eu sacudi a poeira, arrastei a sandália de prata pela avenida do coração e sambei. Como sambei - a vida sem samba é vida sem palavra, sem amor, vida sem bateria, sem avenida, vida sem vida.

A vida sem Carnaval, caríssimos, é um nó na garganta.


Viva o samba, o Carnaval, a vida, e claro, o Amor

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Mind the Gap

Rio
Imenso Rio
Imenso Vão
"Sua segurança também é sua responsabilidade"


´"Mind the gap" (Cuidado com o vão) é uma advertência para o comboio de passageiros, pois por vezes há uma vala entre a porta e a plataforma. Foi introduzido em 1969 pelo Metrô de Londres.´ (Wikipedia)

No, gentlemen, it´s more than that. Much more.

Amo os ingleses e sua música, e sua loucura. Sua sensatez. E sua advertência - cuidado. Há um vão.

E ingleses e brasileiros avisam: não coloque o pé ali. Não se deixe derrubar.

Sem cuidado você cai, cai vão abaixo, vão adentro. Cai e some; do movimento para o porto seguro, na chegada ou partida, na transição do status do seu ser, há um vão. Vão. Não vão. Fique. Espere. Vá.

Atenção - há uma fenda quase secreta para um território misterioso; tão discreta que é preciso alertar. Sem vigilância o perigo íntimo torna-se público. Espalha-se. Pulveriza-se, imperceptível, entre nós, os senhores passageiros deste comboio, de ignorado destino. Devemos evitar esse engano; não se engane. Há um vão.

Passe por ele. Seja rápido, preciso, e não olhe para baixo. Deve-se avançar com decisão. Pay attention. Não pise em falso, pelo amor de Deus, não dê esse mole. Só um passinho, só um pulinho. Pronto. Pisou de novo em solo seguro. Adeus, Vão.

Um segundo de desmazelo, e distraiu-se, não viu, não mediu a distância, errou por pouco, ai que pena, basta tão pouco para que tudo desça vala abaixo. Nem pense que é estreito demais para você; vão é vão, e caberemos todos, inchados pelo nosso orgulho ou esvaziados pela desconsideração. Nem pense que está protegido. Pobre ou rico, o vão é democrático e não quer saber de seus rendimentos. Se estiver perto da linha de segurança está por um triz, porque perto do limite, a tolerância é menor; prazos menores, tempos menores, riscos maiores. Perigo progressivo. Fique portanto, atrás da faixa amarela. É mais prudente.

Essa é sua parte - manter-se na área de controle. Não deixe que te empurrem. Tome conta de seus pés. Do que carrega consigo. Que nada te prenda e impeça seus movimentos de salvação. Tenha-se sob seu próprio domínio. Sem tropeços e sem atropelos.

Se ficou para trás da multidão, é passada a hora de ter sido mais atento. Babau. Devia ter se cuidado - o alto falante avisa telepaticamente que você também é responsável por sua segurança - devia ter olhado onde pisa. Onde se mete. Os danos podem ser irreparáveis, e a culpa também é sua. Quanto mais culpa, mais dor; há lesões leves, sanáveis, e outras, profundas, que não tem cama, repouso e terapia que dêem jeito. O vão era fundo demais. A culpa pesada demais. Você caiu fundo demais.

Portanto, caríssimos, mind the gap. Podemos avançar, confiantes, conscientes, seguros; adiante, avante, sãos e salvos. Sobreviventes. Ou não. Podemos, por pressa, azar ou desatenção, cair no vão. E descer pelo ralo, como água suja.