sexta-feira, 2 de junho de 2017

Sobre Ratos e Homens - ou, sobre amar um louco

Centro Cultural Banco do Brasil
Celeiro
Loucura
Mais louco é quem me diz


             O premiado dramaturgo John Steinbeck, falando sobre a vida dura e sem prêmios, dos sofridos trabalhadores braçais na época da terrível recessão norte-americana. 
              Encenado pelos premiáveis e reais e maravilhosos Ricardo Monastero e Ando Gabriel, braços fortes da arte.


Há tempo não falo sobre teatro.
Sofrido, pois foi um casamento feliz -  com o teatro a gente casa, leva para o coração, para a vida, para o sonho. Casamento feliz não devia ter férias conjugais. Mas teve.
E fiel que sou, volto. Voltarei sempre. Amor de verdade a gente esquece que ama, mas não deixa de amar. Outros amores menores vem e vão. Nem sempre são menores, não posso ser injusta. São mais provisórios, mas não menos importantes. Apenas transformam menos e castigam menos, e gratificam mais. Ou menos? Ainda não sei.

Mas sei que desfrutei de um lindo revival de amor com esses ratos. Homens? Sempre. Ratos? Muitas vezes ratos, pequenos, irritantes, nojentos. E misteriosamente, apaixonantes.
Voltemos a um passado distante e triste, quando os homens só tinham a força bruta com a qual ganhavam o pão.  Em terras norte americanas.
O caríssimos está se questionando. É isso aí. Houve muita crise em terras de Obama e Trump, anos atrás, e os "chapas" trabalhavam em troca de comida e casa, fazendas afora. Escravos brancos. Não é privilégio do hemisfério superior, for telling the truth.
Nossos homens passam o pão que o diabo amassou para ganhar o pão de cada dia. Unidos por um amor fraternal emocionante, Lennie e George dividem o suor do rosto e a palha seca onde dormem. Vivem num mundo marrom, árido, empoeirado,  regado unicamente por gritos e lágrimas. Dividem a nuvem ilusória de um sonho de dias melhores. De um trabalho digno, do lucro repartido, da moradia simples e própria. Um mundo fértil onde tudo poderia ser diferente.
(Será que poderia?)
Um deles é louco. Não direi qual. Não importa.
Importa que é louco, que é bruto, que é perigoso. Que aniquila sonhos bons sem querer, ou sem poder evitar. Importa que um é insano e tem o álibi da loucura. Importa que é amado perdoado. Importa que é protegido mata adentro, rio adentro, alma adentro.
Importa que destrói sucessivas vezes a vida do outro, e de qualquer outro que venha a amá-lo.
Mais não direi. Seria estragar a emoção da revelação da verdade final. Da tristeza final. Da vida e morte finais.
Alguém sempre morrerá por amor. Alguém matará nas guerras, em nome do amor e da liberdade, e da necessária sobrevivência. Matar ou viver?, eis a questão.
Alguém que ame um louco não encontra resposta simples. São muitas respostas, muito dramáticas e difíceis de aceitar.
Essa tragédia não é no celeiro. É no divã do terapeuta e no confessionário.
É na alma de quem amou o rato, o homem e o louco.
Digo por vi - vá.
Vá. Chore e se arrepie.
Somos todos loucos e sobreviveremos aos maravilhosos ratos que abrigamos em nossa vida.
Ou eles nos matarão.
A escolha é sua, é minha, é nossa. No Brasil, no mundo, e neste nada árido coração.

       


domingo, 28 de maio de 2017

O Filho You Tuber

De mãe para filho
Ilegais no coração 

Ilegais 2xx - canal do You Tube. Produção, gravação e edição Pedro Araújo e Kaio Martins.
 Temas adolescentes. Dá um like lá


Eis que o tempo passou, e o bebê roliço e moreno que eu pus no mundo é,  para meu espanto e orgulho, um You Tuber.
Personagem fácil deste blog e do blog incomparável do coração de mãe (mil postagens por dia ) o pequeno Pedro volta às minhas linhas - em grande estilo.
Não é mais o pequeno anjo que deixei no colégio. Nem o capoeirista que me abraçava ao fim de treino.
Nada disso, mãe - diria ele.
Tudo isso e mais - direi eu. Muito mais.
O garoto Pedro é um You Tuber.
Puxou à mãe, que posta coisas da vida no blog. Puxou ao pai, figura comunicativa e expansiva. O menino tem o quê da desinibição. A coragem artística de não temer o ridículo. Estes itens acessórios revelam o essencial: esse familiar estar de bem com a vida. Mostrar-se é coisa de quem está de bem com a vida, caríssimo.
Aqueles que não estão, fogem da luz reveladora dos holofotes.  Escondem-se, punem-se e tem desculpas para toda a dor e todo esconderijo do mundo.  O chicote invisível que carregam é incansável. Bate sem parar.
Eu abomino os chicotes.
Creio na liberdade e criei um menino livre. Um menino que rejeitará maiores dores. Um gato de bom coração e boa boca, solto, curioso, habilidoso. Corajoso.
Teve a ideia e  não pediu ajuda.  Encontrou outro pequeno, sagaz, um danado de um empreendedor digital no banco do colégio. Sociedade travada e negócio fechado.  Pouco tempo depois, " Os ilegais 2xx" entrava no ar.
Muito vídeo. Muita gravação. Muita porta fechada. Muita edição.
O bordão "Suavemente suave!!..." ecoa no apartamento pequeno e lembra a todo o quinto andar que aqui temos um You Tuber.
Confesso que os vídeos não me agradam sempre. Muitas vezes eu não aprovo o tema ou o linguajar, mas sempre adoro o conceito. Adoro a liberdade com que se comunicam, a falta de padrão,  de forma, o excesso do sentido óbvio.  A simplicidade, a vibração, a juventude. Adoro que sejam ilegais nesta sociedade onde a lei é, muitas vezes, abusiva e imoral.
Adoro vê - los em ação. Eles tem 1300 seguidores e mil e mil e mil likes. Um sucesso para dois garototes de colégio, sem equipamento adequado, sem patrocinio, sem muita complicação. E eu garanto com meu coração de mãe blogueira: estão arrasando. São bonitos, simpáticos,  inteligentes.  São leves e livres neste mundo esquisito em que estamos.  (Nem avaliam a estranheza do mundo.)  Mostram a cara sem saber se vão agradar ou não. Não temem a reprovação ou a crítica.
Meus ilegais favoritos.
Vejo traços meus neste maluquinho do You Tube. Vejo minhas olheiras fundas e meu tom de voz alto e alegre numa expressão oral que não é minha e num texto contemporâneo que não escrevi. Falando sobre coisas das quais não entendo.
Em meio à prosa da corujice e ao apoio 'a sua iniciativa, eu me orgulho por reconhecer que ensinei esse carinha a dizer o que sente e o que vê.
Ensinei a sentir sem medo.
E ele sente. E diz.
Meu filho ilegal you tuber puxou a mim. Sou aquela que digo porque vi. Sou a mãe de um You Tuber. Dá um like lá.

Eu e Ele - precisa  falar mais alguma coisa?

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Horizonte Carioca

Kilômetros de horizonte


                                                         Copacabana  - click meu
        " Orientar-se no espaço terrestre, do ponto de vista geográfico e astronômico, sempre foi uma das preocupações básicas do ser humano" ( Professor Danilo Pacheco, UFRJ)


Já cantava o bom e velho Roberto Carlos, que além do horizonte deve ter um lugar tranquilo para viver em paz.
Quem sou eu, prezados, ilustres, amados, para retificar o Rei, mas sou abusada mesmo: o lugar existe, e não é além, não. È aqui. É de onde possa ser visto o mar.
As populações litorâneas estão aí para comprovar a teoria sociológica, meio em desuso, de que a visão do horizonte acalma os ânimos. Há quem diga que somos calmos demais. Seríamos indolentes, preguiçosos. Molóides, absorvemos contrariedades e injustiças sem reação a altura.  Não sei se acalma, controla, ou segura, se entorpece ou amolece, mas que há algum efeito levemente anestésico na proximidade com o mar, isso há, e há mesmo. Um privilégio desses, uma sorte geografica, um tesouro planetário tem seu efeito em nós. São kilômetros de costa, de areia, de sal, de coqueiros, a estimular o convivio ao ar livre, o respirar em cheio, o olhar o céu sobre nós.
Nossos endereços são paralelos ou perpendiculares às praias; os valores imobiliários mais caros ou mais baratos, em função da distância ou proximidade da orla.
Não existe Rio sem praia.
Vamos aos fatos complicados. Feia realidade a contrastar com toda essa bênção. O Rio de  Janeiro tornou-se uma cidade caótica. Violência, drogas, desorganização estatal, transportes públicos péssimos, desemprego, governos ladrões, saúde precária, imperio da ineficiência, e por aí vai. O que mantém lúcido o carioca?
O Sonho, caríssimos. O Sonho.
O Sonho de um novo dia. De uma paz maior, de uma vida mais rebelde e livre, de um corpo mais bonito e uma mente mais sã. De uma juventude eterna, interior, que as rugas não apagam e os cabelos brancos iluminam: carioca de crachá não tem medo de envelhecer. E nem pensa em enriquecer também. Pensa em desfrutar da vida, em seus divinos ciclos, distintos e especiais.
De preferência, gastando pouco, entre gente bela e de bom astral. De preferência, com boa música, sem hora, sem frescuras.
Sem muita regrinha social.
Sem muita cobrança de correção moral.
Esse sonho, algo entre bom e arriscado, tem se perdido, e se perde a cada noticiário.
Esse sonho tem sido muito pisoteado, pela ignorância e pela corrupção. Pela falta de amor ao próximo, de respeito ao outro, por um mínimo de bom senso, que está mais difícil de achar que agulha em palheiro.
Mas temos a visão do horizonte. Esse bálsamo divino,  curativo, revigorante. A segurança de que continuamos sortudos por ter uma beleza assim tão pertinho da gente. Devemos valer alguma coisa para o cara lá de cima.
Valham-me os sociólogos. Esse negócio de olhar o horizonte funciona mesmo.
Que paisagem farta e democrática!... Para endereços nobres e miseráveis. Da Vieira Souto, ao alto da Comunidade da Rocinha, é sempre possível avistar o Oceano Atlântico. É sempre possível ressucitar a beleza que anda desfalecida atrás das nossas dores.
Sonho largo, azul, brilhante. Para todos.
Vivo.
Invencível.
Corruptos não o destroem. Desamores não o contaminam.
Tragédias internacionais não o assustam.
O Oceano nos cerca e nos abraça. Lembrando que somos pequenos diante da Natureza estrondosa. Que passaremos, um a um, e a Vida não passará. Há vida, vida em abundância, além dos jornais e dos medos.
Além das solidões.
Temos o remédio da maresia azeda e doce que entra peito adentro e fertiliza o coração, irrigando com sua umidade a aridez do dia-a-dia e preparando corpo e alma para receber um novo amor.
Sempre há um novo amor.
Sempre há um novo olhar para a Vida.
Sempre há um novo caminho que leve ao Mar.
Hoje tenho que agradecer ao Universo por ser carioca, por nunca desistir de ser feliz, por nunca desistir de amar.
Daqui eu vejo o horizonte. E daqui sou feliz.

                                     

sexta-feira, 24 de março de 2017

O nono assalto

Rio
Ah, Rio
Por quê? ....


                   Longe do Paraíso

Carioca é teimoso como o quê.
O Rio pede para gente ir embora. A gente fica. O perigo pede para gente ficar em casa. A gente vai é para a rua. Então fica perto da polícia, então não demora. Não. A gente fica onde quiser e até a hora que quiser.
Deu no que deu - o nono assalto. O mais rápido,  silencioso, e traiçoeiro assalto de todos os oito que o antecederam. Carioca teimosa que sou, assaltada oito vezes, já deveria estar mais esperta. Estava não. Jamais estaria.
Noite linda. Posto Seis, Copacabana. E era um passeio à beira mar. Coisa fina, um passeio de namoro. Um passeio raro, sem hora, sem cerimônia, cheio de delicadezas e simplicidades como só os passeios de namoricação sabem ser. Como os recém descobertos prazeres, que experimentam-se devagar, demorando o gosto na boca, adiando a saciedade para prolongar o sabor. Aquele momento suspenso que quer-se reter. A poesia que se lê e relê para ecoar a palavra na mente; era tudo isso, e estávamos os dois ali, absortos, vulneráveis, visíveis, óbvios para o ladrão.
Em um segundo, em uma pedalada, sem tocar em nenhum de nós, ele caiu com um raio. Sem que o ouvíssemos ou víssemos ou pressentíssemos,  com a habilidade de um mágico e a pressa de um rato, o jovem marginal pescou o celular de meu bem e carregou-o sem dó para o submundo dos produtos roubados. Sem mais.
Ficamos atônitos.
Fomos sacudidos com força do nosso sonho e acordados com violência. Era hora de cair na real. E a queda foi brusca. Lesionou.
Passantes assistiram e vieram se solidarizar conosco. aceitamos o apoio meio calados. O pessoal da arquibancada do drama compareceu em peso. Muito reservados e ansiosos por segurança, agradecemos e seguimos. Sentimo-nos sós em nossa desproteção, desamparados na condição de assaltados e subtraidos, sem chance de defesa ou escape. Fomos roubados enquanto suspirávamos. Nosso gostar e nosso bem querer  não garantiram  bem estar e tranquilidade. Que dura constatação. A gente acha que gostar de alguém é um escudo para as armadilhas da vida, uma bolha de paz, e não é.
Ainda vejo o menino de costas, pedalando em alta velocidade, celular roubado na mão. Com muita frequência vejo os grandes ladrões do meu país roubando a dignidade do brasileiro, e não partem em fuga. Sem temer punição,  continuam aviltando a sociedade com a imoralidade da corrupção, essa bactéria desgraçada e auto imune que paralisou o país.  Vejo o capital público sendo roubado, as chances profissionais reduzidas,  as regras socio-econômicas cada vez mais desleais. E é assim também,  na destreza, na mão grande, na covardia, enquanto sonhávamos com dias melhores e mais justos.
Diferentemente do pobre e negro ladrão na bicicleta, nossos vilões tiveram de um tudo: nasceram em brancas famílias,  estudaram, comeram bem, dormiram em confortáveis quartos com lindos brinquedos. Tiveram médicos e remédios e um futuro promissor. E são tão ou mais ladrões que o magrelinho da bike.
Experimentei a dor da vergonha dupla.
De ser brasileira neste Brasil de ladrões diplomados, instruídos e famintos por dinheiro sujo. De ser copacabanense neste balneário de trombadinhas famintos e drogados,  sem instrução, sem presente, e com temivel futuro.
Uma tristeza moral tomou conta de mim.
A vergonha, pesada e profunda, também teimosa, está custando para passar. Preciso de coragem. Preciso de um tiro de misericórdia na minha patriótica e moribunda esperança.




quinta-feira, 16 de março de 2017

A foto encontrada

Paris,
Bon Soir, Paris.

Tem tempo, mas ainda vale: o tempo urge, a caravana passa, e o ensinamento fica.
Estava eu, caro leitor, a prestar auxílio ao meu então companheiro. Homem é bicho desorientado e precisa de muito apoio em tarefas simples. Houve esse momento, confesso, de sugerir uma urgente faxina do quartinho dos fundos.
Conclui-se que tem homem para tudo mesmo neste mundo. E mulher também. Até para faxinar quartinho em domingão de sossego.
Missão é missão, aprumei o corpo, e lá fui eu.o
Limpa daqui, paninhos com álcool, varre dali, separa, empacota, joga fora. O ambiente aumentando.
Afasta o móvel. Esse aí pesadão. Ajuda, ajudo. Empurra.
Surge a foto.
Resgato-a com cuidado. Ergo-a contra a luz com uma curiosidade quase cientifica, claro.
Uma foto. Um pedaço de papel. Coberto por uma camada grossa de um misto de mofo e poeira. Esteve encurralada por uma pesada estante, a pobrezinha.  Sobrevivente.
Com a ponta dos dedos limpo a superfície.
Vejo a Torre Eiffel e uma moça sorrindo em primeiro plano. Não é bonita nem feia. Nem magra nem gorda. Meia idade. Não ouso checar o verso. Medo de palavras escritas, pavor.
" - Quem é? "
" - Minha ex. "
Viro a foto. Leio as temidas palavrinhas. Estranho o som de minha voz, pareceu-me estridente e infantil.
" - Fulano querido, estou encantada com este lugar mágico. Uma pena que você não veio. Temos o mundo para conhecer, e começar por Paris é uma ótima idéia. Te amo. Beijo, Fulana."
Indiferente ele estava, indiferente continuou. Fazia-se de surdo.  Perguntei,  atônita,  você não quis ir?
Recebi então a pior resposta que um ser humano adulto,  instruído, e com dinheiro no banco pode dar: " - Não tenho nada para fazer em Paris. Muito menos com essa louca ".
Alto lá. Infringido Código de Etica do Sindicato das Ex. Só uma mulher fala mal de outra mulher.  Homem não. Homem agradece a divina oportunidade da convivência e segue adiante, em silêncio e respeito.
"- Como assim, louca?!"
" - Sim. Louca. Depressiva. Insuportável" Pode jogar fora, se quiser".
Calei-me e olhei a foto. Vi uma mulher dona de si, que embarcou sozinha para Paris, curtindo Paris, e dando-se ao trabalho de mandar uma foto. Seu texto sugere, elegantemente, um sonho a dois de sair pelo mundo.
Olhei para ele. Vi que não sonhou. Vi que não sonhava.  Um homem que sequer se surpreendeu, nem uma arregalada de olho, um sustinho, nada, diante de uma foto antiga da ex,  que viveu com ele por quatro ou cinco anos; a ela referiu-se sem carinho, sem mágoa, unicamente com reprovação. Um homem desorganizado e ausente, que deixou um quarto ficar no estado caótico que estava aquele. Poderia ter um cadáver lá dentro, não teria percebido.
Na verdade, o quartinho continha quase um cadáver. Estava lá sua lápide para marcar o local. Uma parisiense lápide, em ignorada homenagem a alguém que morrera e ele enterrara atrás da estante. E o turrão, que não tinha nada para fazer em Paris, não choraria seus mortos.  Jamais.
Percebi, com tristeza e intuição, que um dia eu estaria daquele jeito, tal qual minha antecessora estava naquela foto. Em Paris? Não. Esquecida num quartinho dos fundos, atrás de um móvel velho, claustrofóbica, sufocada pela poeira do tempo. Que poderia ser jogada fora. Uma mulher que não causaria mais nenhuma emoção.
Que triste.
Uma pessoa que teria seus sonhos sozinha, que os viveria sozinha, e de vez em quando o ajudaria no serviço pesado da casa e em menores empreitadas.
Louca e depressiva, eu terminaria talvez escrevendo palavras sem importância,  falando de um amor sem importância, de uma viagem por um mundo que para ele não teria importância. De uma Paris sem importância.
Muito triste, limpei a foto e guardei-a numa pasta,  com alguns documentos de validade vencida. Aquela era a foto de um papel vencido, que não o identificava mais. Melhor guardar junto aos seus colegas de turma, para que lhe atenuassem o frio destino.
Olhei ao redor, ele prosseguia sua limpeza exterior, na posição defensiva dos muito ocupados, e eu me vi só.
Paris, queridos,  nunca esteve tão distante de mim quanto naquele momento. Tão inatingível. A Paris vibrante da alegria de amar e de se aventurar, e de sorrir para Torre Eiffel e Rio Sena. Caminhar.  A Paris cidade luz que acende uma nova vida, gigantesca e exuberante. Um tesouro de cultura e bom gosto.
E eu tive certeza que tenho muita muita muita coisa para fazer nesta vida.
Muita coisa para fazer em Paris.
Muito sonho para sonhar.
Percebi-me em trânsito.
Comecei ali, algo tristonha e algo esperançosa, a preparar minha solitária partida.
Au revoir, mon chér



quinta-feira, 9 de março de 2017

Acabou a monogamia

Casal
Trisal
Tribal
Normal
Promessa de felicidade - só no céu 
Foto: web 

A psicóloga, antropóloga, socióloga, escritora, intelectual, tudo enfim, Regina Navarro nos explica em sua nova e valiosa obra " Livros do Amor", entre outras análises, que a monogamia acabou ou vai acabar brevemente.
Muito debate em torno da afirmativa e pouco estudo da longa obra. Dois volumes pesados, que poucos estarão dispostos a ler. Prendamo-nos a este bordão, que a midia esperta escolheu como representativo - " a fidelidade conjugal acabou. A  monogamia vai acabar. " Profecia, praga, promessa, ou conclusão científica? Um pouco de tudo.
De fato,  se olharmos ao redor, a colheita dos frutos do "amor romântico" é um fiasco de primeira. O desejo de se completar e de realizar-se fora de si e através do outro não funciona. Descamba para uma neurose insuportável. As namoradas e esposas e amantes desse  modelo viram apóstolas - largam suas sandálias para servir ao Mestre. Melhor dito, apóstolas tiranas e sofredoras condenadas. Se tem bicho duro de aturar é mulher dedicada. Que exigência de gratidão. Impossível pagamento à altura de tamanha devoção. E no terreno minado da exigência e cobrança, e da insatisfação, o amor se desintegra.
O oposto, radical, o egoísmo a dois, também não resolve o vão do coração. Se fosse assim, era fácil, simples, e todo o mundo seria bem feliz.  Seríamos companheiros de quarto, viveríamos uma república emocional, onde cada um tem sua vida. Dormiríamos juntos. ou acompanhados de outras pessoas. Sonharíamos em separado.
Então agora vem mais essa. Relações estáveis sem a preocupação da fidelidade.
Nem precisa preocupar mesmo. Sabemos que não tem vacina que impeça a infidelidade. A fagulha do desejo, quando acende, queima em solteiros e casados. A proposta da teoria de Navarro, é que não precisa doer. A monogamia traz em si a ameaçadora espada da traição, e é um pacotezinho indigesto mesmo. Mudemos então de pacote. Chega dessa história de monogamia.
Com todo respeito aos acadêmicos do comportamento humano, não há nem haverá teorias coletivas para o amor. Escrevam tratados e façam doutorados, como queiram, porém cada ser humano é único em seu amor e sua forma de amar. E quem não é feliz consigo, precisa se tratar e se descobrir, senão não o será tampouco, a dois. Tente a três. Imagino o inferno de Dante com duas ou mais, a perturbar um infeliz. Ou dois belos a dividir a fêmea? Acho difícil. Brasileiro? Impossível fora da fantasia do ménage.
A grande busca pelo impossível - amar, realizar, aumentar o prazer, e extirpar o sofrimento. Não dá. Vai ter um pouquinho de dor e preocupação sim. Temos uma inevitável mão dupla que permeia esse caminho.
Ninguém quer sofrer, e os mais evoluídos não querem causar sofrimento também. Só que sofre-se e faz-se sofrer, desde que o mundo é mundo; e cura-se e cicatriza, e amamos de novo.
A novidade é que esse processo amoroso pode ser menos sofrido, muito menos sofrido, sem promessas falsas, e sem leviandades - o pessoal do  casal e o povo da poligamia; a galera do sexo casual e os adeptos do amor eterno. Ética evita sofrimento, gente, traz segurança e uma imensa, imensa liberdade.

A mega inteligente Regina Navarro,   ou quem quer que seja, não conseguirá dizer o modelo que serve. Ouso afirmar que não pretende e tem sido mal interpretada.
Estou mesmo por ver a receita do amor, afinal.
Quem tiver a fórmula da felicidade no amor, que a apresente.
Se tiver a sua própria fórmula, bem, se dê por muito, muito sábio e sortudo.
Ser poligâmico servirá para uns e não para outros.  Ser monogâmico cai como uma luva ou como uma forca. Depende.
Cabe a cada um encontrar sua tribo. Cabe a cada um ser claro, sincero, honesto. Essa parte é a nossa, é uma longa e trabalhosa parte, que sempre, sempre, sempre, invariavelmente sempre, envolverá escolhas, e perdas, e ganhos.
Vamos encarar nossos espelhos mais escondidos e aquilatar as coisitas nas balanças encostadas do banheiro dos fundos. Caneta da investigação e respostas ao velho questionário do quem sou, o que me importa, o que quero, o que gosto. Até onde posso.
Somos finalmente livres para escolher, para tentar, para descartar.

E sermos felizes, caramba, trocando de respostas e de tribos, se quisermos.


quarta-feira, 1 de março de 2017

A ferida na perna

A chaga
A chama
Inflama

Poética imagem 

Tinha uma coceirinha e eu cocei. Quem não coçaria? Pois é. Inflamou.
Por baixo da pele, há vida. E vida exige cuidado. Higiene. Assepsia. Consegui eu mesma me infectar - tá lá a feia chaga, prova da minha inocente coçadinha. (Pausa. Reflexão necessária . Quando é que não é assim? Pouquíssimas vezes as causas dos machucados são os outros.)
Podem pensar que exagero. Que seja dengo, charminho, não foi não . O negócio doeu, inchou, cresceu, e corri para o médico.
Terça de Carnaval.  Descubro-me descoberta. De quê meu Deus, indago à mocinha da clínica? - descoberta pelo plano de saúde. Assim descoberta, exposta à saúde pública do Rio de Janeiro.
Vivo até aqui me safando das armadilhas dos sistemas. Mais uma para conta. Não é um planinho findo a mais que irá me derrubar. Parti para o SUS, que a ferida, outrora botão, por ora estava em flor.
Chego no hospital. Estou lúcida, limpa, banho tomado, bem calçada. Destoando lamentavelmente da maioria. O carioca de forma geral não é caprichoso. Não tem muito zelo pela sua imagem nem pelo seu comportamento.  Não faz nenhuma questão de ser arrumado, nem educado, e costuma implicar com quem é.
Isolei-me num canto e olhei ao redor. Quantas mazelas. Ah, o frágil corpo. Pressão alta. Taquicardia. Hemorragias. Febres. Uma ambulância traz uma moça muito jovem desmaiada, a mãe narra que ela acordou, botou a mão no peito e desmaiou. Um rapaz ferido, bravo,  com jeito de quem estava em briga feia.
Idosa muito idosa e muito sozinha. Inclusive desacompanhada de sua consciência.  Não sabe dizer o que sente.
Envergonho-me de minha pouca ferida. Sinto-me plena e vigorosa. A enfermeira que tira meu sangue é carinhosa. Lembra minha babá da infância e eu sinto a velha certeza de que nada de errado neste mundo me acontecerá se ela estiver por perto.
O médico surpreende. Jovem. Gentil. Atencioso. Intenções duvidosas. Tem medo de botar a mão na minha perna. Fica gago. Faz perguntas repetitivas. Minhas respostas não o satisfazem.  A contra gosto me entrega a receita, me despeço,  ele me chama de volta. Sento-me empertigada. Pergunta onde moro, com quem moro. Esta' visivelmente nervoso. Pede que eu volte ao fim de seu plantão para conversarmos melhor. Sobre o quê???? Minha ferida???? Meu sangue???? Prossegue nesta conduta atípica, tira o jaleco, atravessa a meu lado a sala de espera indiferente aos que o aguardam e me conduz determinado à porta do hospital. Quer me levar ate' o ponto de táxi no outro quarteirão. Não entendo a fragilidade que este homem viu em mim. Sequer atingida por um tiro de canhão eu seria frágil; e entre meus mortos e os feridos da emergência eu estou perfeitamente bem. Ou não? Estarei equivocada? Será  que estou, afinal, bem mal? Entro no primeiro táxi que passa. Largo o médico na calçada. Agora vejo a fragilidade dele; queria fugir dali.
Escapuli.
Socorro.
Repouso.
Remédio.
Curativo.
Suspensão de atividades físicas.
A voz serena e carinhosa de meu bem a me cuidar.  Que eu me cure da perna. E da loucura alheia. E de mim.








Respire

"Onde vc estiver
Respire
Triste ou alegre
Respire" - mantra de yoga
                     Esta moça me representa
                     Foto: web

Vim até aqui arejar o pensamento. Eita mundo de loucuras sufocantes.
Precisamos de oxigênio para o  corpo físico. Srs passageiros, o melhor destino do ar nao é o pulmão. É a mente.
Arejar.
Renovar.
Dar um basta nas velhas idéias que me enferrujam. Nas velhas convicções que me amarram ao que já não sou. Traço boa briga com o medo. E com o medo de sentir medo. Não sei quem vencerá, mas já eu mesma venci - lidar com seu próprio medo exige grande coragem.
Vim até aqui para afastar-me do que não me nutre, do que não me satisfaz, do que não me empolga mais.
Vim tirar as máscaras.
Como os políticos desavergonhados,  rompo os compromissos previamente fechados. Irrealizáveis. Tudo mudou.
Respiro fundo a maresia. O cheiro da saliva. O cheiro de café fresco, da roupa limpa, do cabelo lavado. O cheiro do quarto dos filhos. Do cloro da piscina.
Deixo entrar o aroma da vida recém parida.
Agora faz isso com suas idéias, meu bem.
Seus projetos. Seus sonhos.
Não os têm?  Certo disso? Duvido. Ninguém lê um blog de crônicas sem alguma abstração.
Estou eufórica hoje, escrevo sem ordem. Cenas de minha vida disparam enquanto fecho os olhos. Estou aqui e não estou.
Olhando para trás, vivi bastante. Vaidade pagã pelas vitórias. Dou- me conta de quê o que me orgulha não é bem o passado. É o que virá. Meu pescoço ainda estica alto, para ver a paisagem ao longe. Há novos mundos e planetas e encarnações.
Sempre há o novo amor.
Fôlego.
Avante.
Ajeito a mochila nas costas. Carrego o necessário,  menos que o necessário, gosto da sensação de que falta algo. Aciona o motor instintivo da busca. Aciona o sábio silêncio da aceitação.
Parti.
Respiro e sigo. Coragem. Novas estradas me chamam.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Uma diarista para o meu bem



A santa do lar
Vamos devagar


                                                              Deixa para lá








Que sociedade a nossa!
O mundo acabou, senhores. As feministas venceram.
Em vez de meter a mão na louça e na massa, as mulheres de hoje terceirizaram. Procuram uma diarista que faça esse desgastante serviço.
Nada de umbigo no fogão e mão na água fria. Agora é barriga sarada e unha feita. Bolsa no ombro rumo ao trabalho - temos outros compromissos.
Portanto o negócio é arrumar uma diarista para o meu bem.
Que não seja muito jovem nem razoavelmente bela; a tentação é uma porta larga, bem fácil de ser atravessada. O homem é quente.
Que seja calada,  sem muita opinião também seria recomendável. Um pouco surda, assim não ouve aquela voz de veludo. Nã nã ni nã não. Aquela voz é música, é melodia, é canção. Não é coisa assim fácil de achar não, para qualquer uma ouvir.
E também nada de barulho, panelas batendo, aspirador ligado. Meu bem gosta de sons suaves.
Que chegue na hora certa porque o patrão sai cedo. Em ponto. Ele não pode se estressar, não o enerve, por favor, sua calma é preciosa para mim. Mas também não o agrade muito, que homem é bicho bobo e se apega. Devem ser meus os maiores agrados.
Que sirva um café fraco, ou forte, ou sirva frio, nunca melhor que o meu. Nunca melhor que o café que saboreamos olho no olho.
Que arrume sua cama sem sentir seu cheiro. Segure a respiração, querida. Esse cheiro é delicioso mesmo.
Que entre no seu quarto com respeito, é território místico.  Proibido olhar para as marcas que ele deixar na cama- hipnotizam. Seu travesseiro, por favor, não toque; é
onde pousa sua cabeça para dormir? Não é verdade.  Seu travesseiro é meu colo. Sou eu que estou ali.
Edredons e lençóis, nem pense. Toalhas, cuecas? não encoste querida. Aí estão guardados tesouros.
E seus livros, seu teclado, seus óculos. Deixe aí, senhora. Limpe por cima. De leve. Sem muita intimidade. Acho um pecado que outras mãos invadam esses tesouros.
Cuidado com essa estatueta, por favor. Trouxe das mil e uma noites do deserto. Aquele negocinho redondo? Veio do outro lado do mundo, protegido no bolso de seu casaco. Ainda guarda suas digitais. Não pode cair de jeito nenhum.
Quanto às refeições. Especial atenção. A comida deve ser levemente temperada e bem salgada. Fresca, que cheire pela casa, que o aroma anuncie uma refeição prazerosa. Aprecia a boa mesa. Mas não capriche muito não. É vaidoso e gosta de manter a elegante figura.
Abra as janelas e deixe o Sol entrar.
Não muito. Tem a pele clara, alva. Sensível
  Isso, feche um pouco a cortina. Sem excesso de luz.
Fique perto, atenta, mas sem se aproximar. É artigo raro. Coisa fina. Um em um milhão . Custei para encontrar.

É.
Acho que não vai dar.
Vou desistir dessa busca por diarista.
Deixa o serviço de casa para lá.





segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Turbante pode

 Me dá que é meu
 Claro, é seu
 Mas deixa um pouco comigo
 Não é meu, nem seu
 É tudo nosso





                 
 " Vida de negro é difícil / é dificil como o quê / 
eu quero morrer de açoite / se tu negra, me deixar " ( Caymmi)



Relutei. E como relutei.
Não gosto de chover no molhado, nem de bater na mesma tecla, nem de dar murro em ponta de faca. Mas o assunto me incomoda muito. A cada vez que abro o facebook tá lá: apropriação cultural.
Então, lamento, mas alguns poemas emergentes e urgentes de amor aguardarão mais um pouco.  Ficarão latejando e fermentando, crescendo, se definindo e se revelando. Donos de si,  sairão na hora certa pelo teclado antigo, tal qual este vivido coração cibernético. que não erra de hora.

Vamos falar logo deste negócio. APROPRIAÇÃO CULTURAL. Sob o olhar de uma pessoa comum, Não sou sociológa. Não estudei moda nem antropologia. Não sou ativista de nada que não seja PAZ.
Fui em busca de informação. O olhar do leigo existe instrução. Não muita para não se perder em conceitos profundos. Também não pode ser pouca, para não encalhar no raso. As coisas rasas nos afogam com mais facilidade que maremotos turbulentos.
Turbulentos turbantes!!!! Eis que surge um trocadilho oportunista...
Será oportunista de minha parte vir a querer, um dia, por acaso, por moda, por frio ou por calor, posso querer usar um turbante. Serei eu negra o suficiente? A cantora Anitta, foi recriminadíssima por usar dreads africanos. Acusada de estar apropriando-se de um símbolo negro. Perguntei a muitos, sem resposta, se Anitta é por acaso, européia. Há um grande racismo implícito em negar a origem negra da funkeira. É bela. É rica. Faz muito, muito sucesso. E usou dreads. Acusada de oportunismo. De defender bandeira que não é sua. De querer ganhar boa reputação. De fingir que não é racista.

A tal apropriação cultural, mal interpretada por tantos, é bem oportunista também. Definida pela revista Carta Capital como: " Apropriar-se de um símbolo de outra cultura desprezando o contexto de onde ele realmente vem. Essa é a grande crítica que se faz à apropriação cultural. Ela se apodera de outras culturas, sem necessariamente a ajudá-las a ter a visibilidade merecida no mundo."
Carregando nas tintas: um povo tem sua identidade cultural exteriorizada, entre outras coisas, por sua indumentária. O povo é dominado por outro, que proíbe e pune suas manifestações culturais. Os anos passam. As décadas passam. O povo dominador, tirano, agora enxerga nesta manifestação cultural uma possibilidade de de aparentes acordos, e muda o discurso: apoiemos! É bonito! Com muita ironia, falsidade, e vantagens capitalistas nesta mudança de conduta. Ou, no mínimo, sem o devido significado.
Ora, ora, ora.
Teríamos, então, com essa prática , o abuso e o desprezo pelo que é do outro. Estamos falando da essência do racismo que permeia toda escravidão, ou do contrário; da escravidão que enriquece o racista.  Nada mais que isto. Racismo, escravidão, sofrimento, covardia. Mulheres brancas no cartório e amantes negras na cama. Muito chicote e lágrimas sem fim. Muita injustiça e covardia. Mão de obra gratuita ou quase. Elite milionária e branca.
Isto parece não ter acabado na verdade.
O racismo existe no Brasil, no mundo, e dói fundo, dói sozinho, aquela dor aguda e súbita que dá vontade de gritar, mas o grito morre esganando o pescoço. Só entende quem passou.
A boa nova é que o racismo hoje é crime, tipificado em lei.  Registre a queixa e será apurado, e punido.  Crime grave, gravíssimo.
Sentimo-nos bem guardados e  podemos ostentar nossos pertences históricos. Nossas relíquias e medalhas.
Esse desfile orgulhoso ajuda a curar nossa dor. Carregamos as marcas do tronco com a honra dos vencedores.
E se um amigo branco, japonês, hindu, judeu, nórdico, quiser ajudar a carregar o troféu, deixemos, caríssimos. Sem egoísmo cultural. Ele não o faz mal intencionado. Isso de enxergar tanta má intenção é  trauma de cativeiro. Estamos livres.
Ah..." a galega nao sabe o que faz.". Paremos com essa mágoa ancestral. Vamos relaxar um pouco e usufruir da nossa tão  esperada comunhão racial. Não nos diminui em nada dividir esse andor. O santo não é de barro. Pode carregar alto para o povo achar bonito e aplaudir.
Dizer que só o representante pode abusar de sua estética é delimitar fronteiras. Acaba por separar as tribos e etiquetá-las. Classificar. Cuidado.  Em breve teremos a braçadeira nazista. A Estrela de David. A faixa rosa para os gays.
Não.
Não aceito o discurso da apropriação porque traz, intrínsico, o temível discurso da proibição. Do não poder porque nao te pertence. Porque é meu e não é seu.
Porque vou para a senzala e você para a Casa Grande. Porque fui para o campo de concentração enquanto você, branco, ariano, europeu, passeava nos museus.
Carissimos, que nenhum conceito acadêmico nos aparta da unidade maior. Que nenhuma teoria sociológica marque limites para a maior irmandade que há - a única que conheço -  os terráqueos. A filosofia serve para libertar. A liberdade de expressão (e de emoção), esta sim, é a verdadeira conquista eterna.
A deusa loura usar dread? Pode. A deusa negra usar mecha loura ou uma peruca Chanel? Pode.
Podemos misturar o sangue e o gosto num beijo ou numa cópula? Podemos. Casais inter-raciais de monte por aí, a afrontar esta capenga teoria, corpos e mentes coloridos e deliciosamente misturados. Sejamos coerentes. Se o branco nao dá o devido valor ao símbolo,  não dará valor a criatura. Teoria estreita, curta e perigosa.

Carrego quatro ou cinco nações em mim. Reverencio todas. Estou bem viva neste corpo miscigenado, e tenho orgulho de meus antepassados, todos eles, do que sofreram, do que conquistaram, do que perderam. Do muito que me ensinaram.
Usarei turbante angolano e lenço português, farei pasta em casa e tocarei castanholas. Tambores e feijoadas à vontade para todos os amigos.

Sou do mundo. Somos do mundo. "Somos todos um."

Bom turbante para todos.

 A bela Anitta, de dread. Porquê não?


.








quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

O Banco do Marido

Marido é marido em qualquer canto
Namorados são diferentes
ìndio mulato preto branco
Namorados são diferentes
( Parafraseando o genial Arnaldo Antunes)

     

                     

O objeto desta conceitual discussão não é o banco. É o marido. Mas fica a ilustração do banco mesmo, a fim de preservarmos o(s) envolvido (s).




Esta foi comigo mesma, e narrarei na primeira pessoa. Bastante ególatra essa classificação do pronome pessoal "eu". Primeira pessoa. As demais virão depois.

Enfim, egolatria ou solidariedade,  foi comigo, primeiríssima pessoa e segunda ou terceira esposa e milésima namorada de alguém. Por circunstâncias da vida, convivo com pessoas ( segundos e terceiros pronomes ) que não passaram por tantas experiências, e por formação sócio-cultural custam a entender que meus filhos são irmãos por parte de mãe, e tem outros irmãos, por parte de pai, No caso, especificamente, a figura rara e carimbada do meu porteiro. S,Lourival, resiste a este fato. Pernambucano de boa sepa, chegou ao Rio com uma panela e um rádio, e uma vez instalado na Rocinha, mandou vir a noiva. Há 35 anos. Não separou, divorciou, casou, ou teve filhos com outra que não sua mulher, no padre e no juíz.

Eis que pelos olhos de S.Lourival sou "largada do marido, coitada de D.Elizabeth." Há que explicar - eu e meus maridos largamo-nos mutuamente; não sou coitada, nem vítima, nem infeliz; e meu nome de batismo é Bettina. Tudo isso muito difícil de aceitar para o S. Lourival.

A cada relacionamento que inicio vejo o olhar de S.Lourival. Quando desço para sair, arrumada, salto alto, ele só falta se benzer. Posso ler seus pensamentos. "Mulher largada do marido é isto".

E já vinha eu num relacionamento estável. Quase três anos, número alto para nossos atuais amores líquidos que escorrem pelo ralo em muito menos tempo. Quase um marido, não é mesmo?

Muitas vezes ao vir me buscar, o voluntário do amor puxava uma conversa com o bom e velho S.Lourival, que na verdade, nutre um grande carinho por mim. Era o "namorado". Palavra meio suja, pronunciada rápida e baixo ao interfone.  Um sinal de alerta para uma fuga, talvez. 
" Seu namorado está aqui embaixo, d.Elizabeth". Incomodadíssimo.

Meu então namorado compra um banco. Um banco para ser usado quando se toca bateria. Um banco que não se compra para sentar, ler jornal, nada disso. Seu mundo era mesmo peculiar, seus objetos peculiares, e suas compras também. Nosso relacionamento peculiar mancando, rateando.
Pede ao vendedor do banco que o entregue em minha casa, mais fácil, mais perto. 
O vendedor, um amigo querido, entrega em minha residência, como combinado. Me avisa  " -  O banco está com seu porteiro. Avisei que é de seu marido."

Perfeitamente compreensivel dentro de sua ótica.. Pessoas da meia idade tem maridos, mulheres. Namorado é coisa de outra faixa etária.

Chego do trabalho e pergunto ao s.Lourival. " - O  banco?"
Ele diz "- Entreguei ao seu marido. "
Não titubeei. Liguei para confirmar.

Só que não, como está na pauta dos adolescentes. Só que não. Nada. Nada de banco.

Volto à portaria "- Entregou mesmo, s. Lourival?"
" - Entreguei sim, d.Elizabeth. Quando ele veio deixar o menino, levou logo o banco, que não gosto de nada ocupando espaço aqui na portaria"
" - Que menino, S. Lourival?" 
" - O seu menorzinho".

Lascou-´se. S.Lourival entregou o banco para o marido errado. O Ex. O Pai do Caçula.
O banco passeando pelo Rio de Janeiro, pelos entendimentos misóginos desta criatura - marido é quem é pai de filho. Meu Deus. Eu tenho dois filhos, um de cada pai. Teria portanto, dois maridos? Lá vou eu atrás do referido ex.

"- Pessoa, você recebeu um banco?"
"_ Sim, Maior banco maneiro. Obrigadão. Adorei. Show"
Cai a ligação.
Socorro. Por que, Senhor, eu daria um banco a quem quer que fosse??? Banco agora é presente????

Consigo esclarecer o marido pelo não marido, e o banco chega ao seu devido destinatário;
tive que ouvir, calada, do ex: 
"- Quem manda? Cheia de marido, isto é que dá"

Trata-se de uma grande, grande injustiça.
Marido é quem amamos, de corpo, alma e coração.
Marido é quem divide nosso sonho, quem faz parte de nossas orações, quem muda nosso texto, nosso fundo musical, quem muda nosso olhar para esse mundão de meu Deus.
Marido é um privilegiado, amado além dos defeitos, e desejado além do corpo.
Bem vindo, aguardado, preservado.
Marido é o sortudo, o escolhido, o abençoado.
O que abençoa a vida com sua presença.

Esclarecido este conceito, vejo que o banco permaneceria sem destino, não fosse a força do negócio fechado.  A etiqueta "marido" já tinha descolado de um, há tempos, e também não segurava no outro.
Valha-me a nordestinagem preciosa de S.Lourival.
Nem eu sabia quem era meu marido, como ele ia saber....


terça-feira, 31 de janeiro de 2017

48 horas com o Snipper


Delírio
Viagem
Fetiche



                                     
  Um herói para chamar de seu 
  Cena do filme "Snipper Americano"




Olha, dizer que vi, não posso. Eu não vi.
Eu ouvi e como ouvi - os tiros? Não, caríssimos.
As batidas do coração.

Moça solteira procura ( e acha) confusão.
Perfil de facebook, sugestão de amigo de amigo de amigo. Aceitou prontamente. Que belo moço, gente.
Soldado americano lotado em Kabul, no Afeganistão.
Que honra! Que máximo!
Que fantasia? Claro que sim. Quem não a teria?
Vamos ter um pouco de compreensão... o mundo anda tão árido por aqui. Vamos para outros desertos. Instigantes. Misteriosos.

O universo feminino precisa do romance. Do frisson. Do novo, do inesperado.
Do irresistível.
Poucos entendem,  e menos ainda os que se dispôem.
A emoção se intensifica em nós se temos o arrepio, o sonho, a ilusão, o suspirar. Potência de mil canhões.
È pacote que se compra por engano. É liquidação de ponta de estoque. Tem defeito. Pode apostar.

Enfim. Em tempos de Facebook, nada mais simples que um perfil falso. Eu mesma posso montar um, com uma foto baixada de alguém muito bela, e partir para golpes baixos mundo afora. Tão simples para os psicopatas. Tão convidativo para os solitários.

A moça caiu. Adorou. Adorou estar em contato com o Snipper Americano. From Texas. From US. Olhos azuis e fuzil na mão.
Cheio de virtudes másculas - coragem, abstinência, proteção. Preparo fisico. E patriotismo!.... Justo neste Brasil de mercenários.
" - Mas que sorte conhecê-lo, Mr. Snipper.", dizia, entre conversas de travesseiro.
Durante 48 horas, um pouco mais, mantiveram contato. Quase íntimo.Trocaram músicas. Sonharam um pouquinho. E que bom poder ser este apoio na solidão do soldado.  Que bom participar deste roteiro.
O herói e a heroína. Fotos. Areia. Uniforme. Beijinhos de bom dia, Honey. De boa noite, Sweetheart.
E aí, o ataque da tropa, manobra não prevista pela Convenção de Genebra - o portento da guerra pede um depósito. Urgente. Indispensável. Passa uma conta na Argelia.
Ora ora ora.
Não parece, sequer ao mais crédulo coração, que Obama e Trump deixariam um soldado a míngua. Não há conto de fadas que apresente este capítulo vil e pernicioso.
A heroína, pobrezinha, descobriu em meia hora de pesquisa na internet, sua vocação perdida para o FBI.
Tudo mentira.
A criatura da foto do profile é um lutador famoso no Canadá.  Casadinho, com lindos filhinhos. Jamais deve ter pisado no Afeganistão.
O homem com quem falou, não se sabe quem é: pode até não ser um homem, tem artimanhas de uma mulher. Somos muito mais ardilosas. E tudo é possível para os mentirosos, de ambos os sexos.
Não tem mais Snipper. Não tem mais Kabul. Não tem mais honeymoon.
Tem contas de face e outros aplicativos bloqueados.
Rosto em lágrimas e coração partido.
Perdeu-se um herói no Afeganistão, há que chorar mesmo. Copiosamente.
Vamos e convenhamos. Quem não quer um herói para chamar de seu?