segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Turbante pode

 Me dá que é meu
 Claro, é seu
 Mas deixa um pouco comigo
 Não é meu, nem seu
 É tudo nosso





                 
 " Vida de negro é difícil / é dificil como o quê / 
eu quero morrer de açoite / se tu negra, me deixar " ( Caymmi)



Relutei. E como relutei.
Não gosto de chover no molhado, nem de bater na mesma tecla, nem de dar murro em ponta de faca. Mas o assunto me incomoda muito. A cada vez que abro o facebook tá lá: apropriação cultural.
Então, lamento, mas alguns poemas emergentes e urgentes de amor aguardarão mais um pouco.  Ficarão latejando e fermentando, crescendo, se definindo e se revelando. Donos de si,  sairão na hora certa pelo teclado antigo, tal qual este vivido coração cibernético. que não erra de hora.

Vamos falar logo deste negócio. APROPRIAÇÃO CULTURAL. Sob o olhar de uma pessoa comum, Não sou sociológa. Não estudei moda nem antropologia. Não sou ativista de nada que não seja PAZ.
Fui em busca de informação. O olhar do leigo existe instrução. Não muita para não se perder em conceitos profundos. Também não pode ser pouca, para não encalhar no raso. As coisas rasas nos afogam com mais facilidade que maremotos turbulentos.
Turbulentos turbantes!!!! Eis que surge um trocadilho oportunista...
Será oportunista de minha parte vir a querer, um dia, por acaso, por moda, por frio ou por calor, posso querer usar um turbante. Serei eu negra o suficiente? A cantora Anitta, foi recriminadíssima por usar dreads africanos. Acusada de estar apropriando-se de um símbolo negro. Perguntei a muitos, sem resposta, se Anitta é por acaso, européia. Há um grande racismo implícito em negar a origem negra da funkeira. É bela. É rica. Faz muito, muito sucesso. E usou dreads. Acusada de oportunismo. De defender bandeira que não é sua. De querer ganhar boa reputação. De fingir que não é racista.

A tal apropriação cultural, mal interpretada por tantos, é bem oportunista também. Definida pela revista Carta Capital como: " Apropriar-se de um símbolo de outra cultura desprezando o contexto de onde ele realmente vem. Essa é a grande crítica que se faz à apropriação cultural. Ela se apodera de outras culturas, sem necessariamente a ajudá-las a ter a visibilidade merecida no mundo."
Carregando nas tintas: um povo tem sua identidade cultural exteriorizada, entre outras coisas, por sua indumentária. O povo é dominado por outro, que proíbe e pune suas manifestações culturais. Os anos passam. As décadas passam. O povo dominador, tirano, agora enxerga nesta manifestação cultural uma possibilidade de de aparentes acordos, e muda o discurso: apoiemos! É bonito! Com muita ironia, falsidade, e vantagens capitalistas nesta mudança de conduta. Ou, no mínimo, sem o devido significado.
Ora, ora, ora.
Teríamos, então, com essa prática , o abuso e o desprezo pelo que é do outro. Estamos falando da essência do racismo que permeia toda escravidão, ou do contrário; da escravidão que enriquece o racista.  Nada mais que isto. Racismo, escravidão, sofrimento, covardia. Mulheres brancas no cartório e amantes negras na cama. Muito chicote e lágrimas sem fim. Muita injustiça e covardia. Mão de obra gratuita ou quase. Elite milionária e branca.
Isto parece não ter acabado na verdade.
O racismo existe no Brasil, no mundo, e dói fundo, dói sozinho, aquela dor aguda e súbita que dá vontade de gritar, mas o grito morre esganando o pescoço. Só entende quem passou.
A boa nova é que o racismo hoje é crime, tipificado em lei.  Registre a queixa e será apurado, e punido.  Crime grave, gravíssimo.
Sentimo-nos bem guardados e  podemos ostentar nossos pertences históricos. Nossas relíquias e medalhas.
Esse desfile orgulhoso ajuda a curar nossa dor. Carregamos as marcas do tronco com a honra dos vencedores.
E se um amigo branco, japonês, hindu, judeu, nórdico, quiser ajudar a carregar o troféu, deixemos, caríssimos. Sem egoísmo cultural. Ele não o faz mal intencionado. Isso de enxergar tanta má intenção é  trauma de cativeiro. Estamos livres.
Ah..." a galega nao sabe o que faz.". Paremos com essa mágoa ancestral. Vamos relaxar um pouco e usufruir da nossa tão  esperada comunhão racial. Não nos diminui em nada dividir esse andor. O santo não é de barro. Pode carregar alto para o povo achar bonito e aplaudir.
Dizer que só o representante pode abusar de sua estética é delimitar fronteiras. Acaba por separar as tribos e etiquetá-las. Classificar. Cuidado.  Em breve teremos a braçadeira nazista. A Estrela de David. A faixa rosa para os gays.
Não.
Não aceito o discurso da apropriação porque traz, intrínsico, o temível discurso da proibição. Do não poder porque nao te pertence. Porque é meu e não é seu.
Porque vou para a senzala e você para a Casa Grande. Porque fui para o campo de concentração enquanto você, branco, ariano, europeu, passeava nos museus.
Carissimos, que nenhum conceito acadêmico nos aparta da unidade maior. Que nenhuma teoria sociológica marque limites para a maior irmandade que há - a única que conheço -  os terráqueos. A filosofia serve para libertar. A liberdade de expressão (e de emoção), esta sim, é a verdadeira conquista eterna.
A deusa loura usar dread? Pode. A deusa negra usar mecha loura ou uma peruca Chanel? Pode.
Podemos misturar o sangue e o gosto num beijo ou numa cópula? Podemos. Casais inter-raciais de monte por aí, a afrontar esta capenga teoria, corpos e mentes coloridos e deliciosamente misturados. Sejamos coerentes. Se o branco nao dá o devido valor ao símbolo,  não dará valor a criatura. Teoria estreita, curta e perigosa.

Carrego quatro ou cinco nações em mim. Reverencio todas. Estou bem viva neste corpo miscigenado, e tenho orgulho de meus antepassados, todos eles, do que sofreram, do que conquistaram, do que perderam. Do muito que me ensinaram.
Usarei turbante angolano e lenço português, farei pasta em casa e tocarei castanholas. Tambores e feijoadas à vontade para todos os amigos.

Sou do mundo. Somos do mundo. "Somos todos um."

Bom turbante para todos.

 A bela Anitta, de dread. Porquê não?


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