terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Esteticista brasileira

Copacabana City

Melhor, Copacabana World


Mais que depilação


" - Tem alguém livre para me atender? "

É assim que marco hora em salão. Detesto negócio de hora marcada para as obrigações estéticas da mulher moderna. Já que é obrigação, então que seja feita quando eu tenho vontade.

" - Tem a Lu. LUUUUUU, cliente para você !!! "

Este é o sistema de comunicação que funciona perfeitamente nos salões de beleza simplesinhos de Copa - sem T.I, sem telefonia, sem microfone, sem recepcionistas falando baixo. Pegam um lápis preto velho, procuram numa tabela (não é planilha, é tabela), tem uma criatura sem cliente, gritam o nome da criatura e ela vem ao seu encontro.

Luuuu estava ministrando explicações técnicas sobre o bom uso de um produto (caro) a uma cliente. Convencendo-a a comprar. "O resultado é excelente", afirmava. Fui olhada como um incômodo. Seu olhar náo esboçou sorriso algum.

Voltei o meu olhar, igualmente sem sorriso, para a recepcionista.

" - Ela está ocupada. Tem outra pessoa livre? "

Lu contesta, mais meiga. " - Eu vou te atender, gata. Deixa só eu terminar aqui"

Ok. Esta que vos fala estava largada, de vestido velho e havaianas. A pessoa estava feliz assim, feliz consigo, a vida é táo boa. A pessoa pode esperar, também não custa.

Fui enfim conduzida por Lu a uma salinha nos fundos, e observei seus gestos seguros ao preparar o ambiente. Reparei que tinha trato - pele de pêssego, cabelos lindos, unhas lindas, cara lavada e limpa. Aliança de casada, saltos confortáveis, blusa branca impecável. Amansei.

Sentei-me e estiquei sobre a maca (é uma maca sim) as partes que precisavam ser esticadas.

Lu dispara: "- Você não é alérgica não, né? Tem uma cara de alérgica...."

Bem, sou. Tenho alergia a esmalte, formol, tinta, poeira, e a gente baixo astral. Comichões incontroláveis e olhos inchados que mal abrem.

" - Sou, mas náo a cera. Como é que você soube, tenho muita cara de alérgica? "

Aí entendi porque o destino me levou até este salão, a este lugar, e a esta pessoa. Lu iniciou um monólogo, que relatarei aos caríssimos. Respeitarei a pontuaçao original e a gramática peculiar de sua narrativa, e peço-lhes que acrescentem um sotaque cearense às suas palavras.

" - Ah, eu sei conheço muito de pele trabalho com pele e a gente tem que conhecer direito nosso material de trabalho.

(sacode o cabelo)

Graças a Deus desde que cheguei ao Rio e conheci meu marido meu marido é cozinheiro de um restaurante chique esses caro que tem pelo Leblon ele me disse - lu, vai trabalhar com pele esse negócio de você e seus irmãos tomar banho de rio a vida toda vocês ficaram com muito problema de pele e tu sabe cuidar deles muito bem esse negócio da sua mãe ter lepra agora chama hanseníase mas é lepra né isso é problema desse negócio dela tomar banho no rio que a gente pensa que tá limpo mas a gente náo sabe como está por dentro né (sacode o cabelo e arranca cera)

e agora graças a deus eu coloquei água encanada e piso na casa de minha màe porque agora tamo bem mas foi muito difícil quanto era pequena tinha irmão para cuidar por isso tive um filho só náo queria que meu filho cuidasse de irmào que a gente nao pariu mas tem que lavar dar de comer ensinar e ainda apanha de cascudo se fizer algo errado hoje eles tão por aí fazendo merda, a senhora me desculpe o nome é esse que o povo dá e isso eu náo ensinei eles a fazer não mas eles fazem e eu não quero nem sabê eu quero é sabê que minha màe está tomando os remédios e tomando banho no chuveiro com água limpa sem esfregar muito que a pele já tá toda machucada e meu pai tá traindo ela direto ele sempre não prestou era cachaça mas náo tinha mulher na rua náo ela agora tá com depressáo isso é depressáo esse véio devia era de sossegar mas agora que a mulher tá doente nao pode mais fazer brincadeira ele tem que arrumá quem faça

(sacode o cabelo passa cera)

eu sei como é isso meu marido náo passa dia sem brincadeira mas ele é bom para mim vivemos bem sempre rindo sempre bem um com o outro que eu náo vou viver com homem para sê ruim tem que sê bom agora tô meio barriguda engordei um pouco é que agora estou fazendo faculdade de estética e cosmética e fico sentada igual uma porca de engorda mas isso é um sonho não incomoda barriga não incomoda cansaço esqueço até que tô cansada quando chega aula nunca achei que eu ia fazer faculdade minha mãe náo sabe nem escrever e a professora de anatomia mostrou para gente lá na sala que a vagina é só um cano, um cano igual eu coloquei no banheiro da minha màe e ainda assim ela pegou essa doença essa hanseníase que a gente náo fala mas é lepra e os homens se endoidam por causa de um cano homem é bicho bobo coitada de mulher que acredita em homem eles querem é o cano da gente

(sopra o cabelo liso lindo e arranca a cera)

meu marido mesmo é bom mas se náo tiver brincadeira toda noite ele fica de cara feia entao mesmo sem vontade eu faço lá as brincadeira que ele quer porque senáo ele vai arrumar outra e ainda vai me passar doença será que isso que minha mãe tem foi meu pai que passou para ele ou foi o rio que lá em casa fomos criados tomando banho de rio eu digo mãe náo precisa mais agora tem chuveiro ela diz que o rio é melhor eu digo que faz mal a pele dela ela nao ouve ninguém tá sujo

(Cera para lá, cabelo para cá, arraaaanca)

eu tomei banho neste rio até meus quatorze anos e naó tenho nada de ruim na pele nem no corpo todo não até agora se Deus quiser nao vou ter Deus é muito bom para mim me afasta dessas cobra de salão que ambiente de salão é ambiente de cobra elas não querem trabalhar e querem jogar olho gordo em quem trabalha eu trabalho demais gosto de dinheiro gosto de ter tudo na minha casa na minha casa temos muita fartura meu marido faz panela de comida até em cima nordestino tem mania de comida e durante muito tempo botei comida na mesa da casa de pai e mãe hoje entra muito dinheiro aqui mas sai muito também tenho que pagar a faculdade minha faculdade é sagrada ainda tenho muito que aprender nesta profissão que escolhi

" - Vai depilar mais o quê hein? "

porque dinheiro é assim quanto mais sai mais entra a gente náo pode ficar garrada no dinheiro náo igual essa gente de saláo tudo garrado com notinha pequena a gente tem que trabalhar sem pensar no dinheiro

minha vida toda foi assim eu penso no trabalho o dinheiro vem depois

e tô aí tô com trinta e cinco anos meu filho com quatorze grande já com cabelo no sovaco me chama de dinossaura eu gosto acho engraçado eu nunca pude brincar com minha mãe se falasse alguma coisa era pecado ser alegre náo é pecado a vida náo é só obrigaçao trabalho náo é obrigaçao trabaho é bom e daí que vem tudo nessa vida do nosso trabalho destes braços aqui e dessas mãos que você tá vendo

" - E a senhora está com quantos anos hein? " tem um pele de trato a gente que conhece vê que trata bem que passa creme bom que come bem que bebe água limpa gente que nasceu bem nessa vida graças a deus eu já sofri mas agora tô bem vivo bem como bem durmo bem estudo trabalho ganho dinheiro crio meu filho direito sem obrigaçáo crianca náo pode ter obrigaçao náo só estudo e divertir com os amiguinho eu nunca que tive amiguinho era tudo socado em casa cozinhando lavando passando apanhando eu me livrei gracas ao meu trabalho primeiro o trabalho depois vem tudo e essas cobra de salão náo me morde com o veneno delas náo gente de salào é tudo cobra mas elas engolem veneno delas e morrem antes de mim"

Quando ela respirou, ele me olhava com olho de pergunta, com esse olho meio de índio que todo nordestino tem, esse olho que enxerga as coisas do chão, do céu, e da mata, esse olho que olha a gente sabendo a resposta e sem chance de enrolação.

Respondi. Ela prosseguiu.

" ah você faz academia está bem está com tudo em cima, faz não? então isso é garotáo hein mulher de quarenta assim bem igual você é garotáo garotáo é um negócio melhor que cirurgia para mulher ficar bem mas às vezes é caro também

(gargalhada cabelo para trás)

né tudo que é coroa aqui de copa tem um garotáo aqui nesta sala elas me falam tudo aqui nesta salinha só eu sei o que eu ouço fico quieta cada um sabe do que gosta mas eu náo vou querer garotáo náo vou querer meu marido mesmo dinossauro igual eu

(rodopia)

"- Pronto, acabou, tá aqui meu cartão e sua fichinha, vou na porta com você.

Eu náo tinha o que falar. Estava sem voz, sem fala, sem ar. Paguei, gratifiquei, abraçei Luuuu e saí.

O ar de Copacabana pareceu-me mais limpo, mais leve, o Rio limpou. E eu tive orgulho de ser brasileira, raça de gente guerreira, raça de mulher guerreira que vence miséria vence desamor vence mãe vence pai vence cachaça vence irmão para criar vence cobra, vence vida vence brincadeira sem vontade vence dia de trabalho, vence aula cansada vence com força vence todos os dias.

Vence, Lu. Você veio, viu, venceu. E vence bonito, vence mais que eu quero ver.

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