segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

O esquema

Rio de Janeiro
Zona Norte

O esquema da malandragem


Parei em um boteco. Boteco mesmo, birosca, coisa assim de pé sujo. Pernil, ovo colorido, kibe. Cheiro de cerveja.

Preservando uma distância respeitável do balcão, disparo em tom de desespero:

- Moço, onde é o banheiro? Pelo amor de Deus.

Quem me conhece sabe que sou assim. Tem uma hora que um banheiro vale mais que a pose.

Parto como louca para o fim do corredor sujo. Alívio, fim da agonia. Respiro melhor, ouço melhor.

Passo próxima a uma mesa. Respiração pesada. Cheiro de cigarro, de loções de barba, de gel de cabelo. Não olho, mas ouço. Uma voz masculina, de idade, idos anos de malandragem.

- É,eu andei te observando. E você não está no meu esquema.

Ôpa ôpa ôpa. Aí tive que olhar. Esta sentença forte vem de um senhor de mais de sessenta. Porte militar, ouro pelo peito e pelas mãos. Bermuda de linho, camiseta branca para dentro, com cinto. Chinelo branco de couro, bigode tingido.

A senhora destinatária da afirmativa, em gestos nervosos, levanta, pega a bolsa e sai do boteco. Finjo atender o celular, assim posso ouvir mais, e sossegada.

- Mais uma aí por favor, diz o velho malandro para o atendente.

O atendente o serve, em silêncio.

Ele prossegue - É rapaz. Sou velho mas não sou bobo. O papai aqui está de olho vivo.

O atendente continua seu serviço, parece surdo. Eu não. Eu sigo para fora em choque. Silêncio. Constatação.

Eu nunca tinha presenciado um desenlace como esse. Poucas vezes nestas décadas de vida ouvi uma frase tão objetiva, resultado de conclusões quase que exatas: - 1.saber qual é o seu esquema; 2. observar; 3.enquadrar; 4. não enquadrar 5. comunicar. Quase um desligamento, um comunicado da gerência: você não está no perfil para o cargo.

E pensei: qual o meu esquema? Não sei, é para existir esquema?

Esquema de quê? Aprendi a duras penas que uma relação é feita de sentimentos mútuos, não de tópicos. Não há uma lista de requisitos. Devemos sentir, e perceber, e deixar fluir. Conhecer, assim, aos poucos, e gostar, aos poucos. Ceder, conceder, solicitar. Trocar. Se possível, construir.

Engano. Existe sim um esquema a aderir. E talvez muito do que eu já representei e ou que foi para mim representado tenha se perdido por não ter claro, em minha cabeça, o tal esquema. Os tais pontos dos quais não abrimos mão. O desejável enquadramento.

Minha permissividade comigo e com o próximo levou-me a alguns descaminhos.
Faltava o esquema a seguir. O regulamento do coração.

Não sei de quantos esquemas tomei parte, e de quantos saí, desistida ou desistindo. Sempre quis fugir do padrão, e acabei fugindo de mim.

Mas há um senhor, um velho e bom malandro que não segue esse riscado. Ele tem um esquema, e mulher para estar com ele, tem que se enquadrar.

Senhor, não sei seu nome nem nada, mas tiro o chapéu para sua pessoa. O senhor em seus muitos anos está dando um banho de objetividade. As coisas são, ou deviam ser, simples assim. Saibamos bem, de cor e salteado qual o nosso esquema. O que podemos oferecer e o que queremos receber. O que nos faz bem. O que necessitamos.
Como gostamos de passar dias e noites. Como gostamos de sonhar e de acordar. Se queremos passear de mãos dadas, se queremos namorar no cinema, se queremos dormir abraçados. Se queremos dormir sozinhos. Se queremos sair ou ficar. Se queremos mais intensamente, ou menos, descompromissadamente. Onde começa e onde termina o território do bem querer.

Se o outro não pode dar o que queremos, ou se exige adaptações aí meio sofridas, nada de mágoas. Não está no esquema. Comuniquemos, com toda a calma e firmeza.

Um xixi urgente me ensinou tanto. Gostei do exemplo. Gostei da sabedoria. Gosto da malandragem antiga, talvez mais honesta que a diplomacia atual.
Gostei do pensamento lógico e direto. E da decisão.

Precisamos todos definir (e redefinir) nosso esquema. E ficar de olho vivo.

E caríssimos, cá para nós: se não está no esquema, aquele abraço.

Um comentário:

  1. Vês! Ninguém assistiu ao formidável
    Enterro de tua última quimera.
    Somente a Ingratidão - esta pantera -
    Foi tua companheira inseparável!

    Acostuma-te à lama que te espera!
    O Homem, que, nesta terra miserável,
    Mora, entre feras, sente inevitável
    Necessidade de também ser fera.

    Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
    O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
    A mão que afaga é a mesma que apedreja.

    Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
    Apedreja essa mão vil que te afaga,
    Escarra nessa boca que te beija!

    AUGUSTO DOS ANJOS

    ResponderExcluir