sexta-feira, 27 de abril de 2012

Cabelo de boa índole

Graça Aranha

Que graça

de emaranhado


Diana Ross, diva toda vida, e sua corajosa cabeleira black power


A pessoa nasceu com cabelo crespo. Amaldiçoada pelo destino, a família fez de um tudo para modificar sua sorte. A pessoa cresceu esticando o tal cabelo. Esticou, alisou, engomou, grudou, formolizou, selou, defrizou. Chapinha. Hidratação. Dinheirão. Escovas progressivas, regressivas, ativas e receptivas, e claro, passivas.

O cabelo ia morrendo na cabeça. Minguando. Alergias no couro cabeludo. Coceiras nos olhos. Não podia molhar tal dia, não podia lavar tal outro, não podia mergulhar no mar, não podia não secar, não podia passar mais de três meses sem retocar o que nunca estaria concluído. Tinha que adivinhar o clima tempo. Tinha que ter horas disponíveis para salões de cabelereiro indisponíveis. Tinha que ter verba-cabelo.

Um dia a pessoa se liberta, cria coragem, e deixa o sarará balançar. Que maravilha de destino, o cabelo ficou soltinho, igual pipoca, igual arroz de festa, livre, leve e solto, frenético pichaim.

Tão viável. Tão econômico. Tão relax. Tanto tempo livre. Tanta preocupação a menos neste vida-work-flow que levamos apressados nas metrópoles engarrafadas.

O povo gosta. Os filhos gostam. As amigas gostam. A pessoa gosta.

Ah, mas tem um ser que não gosta: o segurança do prédio do Sesi, da Av. Graça Aranha. A pessoa vinha andando, salto alto, saia comportada, colar de pérolas de quatro voltas, mimo recebido em outros tempos. Figurino de executiva e cabelo sarará, balançando de tão feliz. Tinha visto a exposição deslumbrante da Cinelândia. Tinha visto a Terra do Céu, e tinha visto a França preta e branca de Doisneau, no Centro Cultural de Justiça Federal. A pessoa estava cantarolando, enlevada, achando a vida muito boa, e indo ao Teatro, só para arrematar o bordejo.

Assustou-se, doidivana criatura esta, com palavras talvez demasiado sinceras, lançadas ao vento pelo segurança do Sesi da Av. Graça Aranha. Uniforme, crachá, arma, rádio, e em 100 kilos de franqueza anunciou sua opinião, em alto tom de voz: " - Mas que cabelo ruim!"

Estamos numa democracia. Cada um fala o que quer. Cada um usa o cabelo que quer. E cada um responde o que quer.

Sim! Meu cabelo tem caráter. Não passa cheque sem fundo, não promete o que não vai cumprir, não jura em falso, não debocha da dor alheia. Vai trabalhar todo dia, não rouba dinheiro de criancinha, nem merenda de colégio público, nem remédio de posto de saúde. Eu talvez tenha lá meus pecadinhos, que também não são esses, mas meu cabelo não. Segundo o vocabulário dos profissionais do ramo, meu cabelo é virgem. Inocente. Inimputável.

Assustador que um cabelo virgem esteja impregnado de maldade, ruindade, crueldade e indiferença. Talvez eu, em momentos que prefiro esquecer. Mas meu cabelo não.

A pessoa respondeu: " Eu é que sou ruim, senhor. O meu cabelo é bom."

O homem calou-se estupefato. Segui sorrindo, e pensei que Elisa Lucinda ia ter um imenso orgulho de mim.

Mas que cabelinho sem caráter

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