domingo, 12 de junho de 2011

Os Anjos, vivos ou mortos

Planetário por Acaso
Rio dos acasos


"Os Anjos devem morrer", com os Ciclomáticos, por Ribamar Ribeiro

Os anjos Renato Neves, Getúlio Nascimento,Julio Cesar Ferreira, Carla Meirelles, Mauro Carvalho
Foto: divulgação

A descrição da peça, segundo o próprio grupo: “Com um cabaré-teatro decadente como cenário, o espetáculo conta a história de Madame, Divina, Mignon, Mimosa III, Nossa Senhora das Flores e Genet. Tudo isso envolto em muito suspense sórdido, em que todos querem ser Madame. Madame não tem sexo, Madame não tem cor, Madame não tem idade. Todos são como anjos. E os anjos devem morrer. O enredo traz uma trama biográfica ficcional sobre o universo de Jean Genet, pela visão do diretor e dramaturgo Ribamar Ribeiro”.


Senhores eu vi. Foi por acaso, fomos para assistir uma comédia.
Chegamos ao Teatro Maria Clara Machado, no Planetário. Um frio de doer os ossos, e eis que a comédia tinha saído de cartaz. O Teatro oferecia gentilmente este espetáculo por simbólicos cinco reais. Entramos.

Vimos um cabaré de lacraias.
Criadas a pão e fel por Madame.
Madame, travestida, corrompida. É a rainha mãe, corrompe, maltrata, castiga, idolatra.
Madame é uma tirana.

A dona do bordel, a dona cruel. Mantém a empregada humilhada, e adula a estrela do show. Todas desejam o mesmo homem, carne e osso de homem, barba de homem, cabelos de homem.
Todas desejam gerenciar o bordel.

Há nus. Há agressóes. Palavróes.
Chocam e assustam. São caricaturas viáveis de tantos tipos por aí. A peça contará com todo talento do mundo, do texto ao elenco, direçao, figurinos. Foram os cinco reais mais valiosos de minha vida. Um ticket para o universo louco e mau de Jean Genet.

Para inserir sua platéia no clima noir o ambiente é escuro mesmo, e o espectador é mantido em suspense. Os diálogos exigem toda a sua atenção. São rápidos, pesados, confessam alianças, amores, desamores, furtos, assassinatos. Misturam português e francês.

Os atores eram para mim desconhecidos, desculpem, há tanto a conhecer neste Brasil de atores divinos. Encantei-me com todos e cada um deles. Perfeitos. Getulio Nascimento é uma moça, um anjo sem sexo, olhos de moça ou de anjo, náo sei, mas de fino trato e péssimas intenções. Madame, o gordo, é opulenta, é rica, é insuportável. Mignon é um canalha de primeira. A empregada, coitada, vive na ilusão subserviente de prestar serviços pessoais a Madame. Madame a despreza. Madame ama Mignon, que ama Divina, a estrela, que ama o Anjo, que náo ama ninguém.

Repetem o refrão - Madame é linda, madame é boa, madame é meiga. Mentem. Covardemente tramam seu fim. São todos anjos endemoniados, certamente. Enfeitiçam com sua exposição das feridas, e afloram nosso sadismo: ficamos hipnotizados pela baixeza a que poderemos chegar.

A montagem do grupo "Os Ciclomáticos", sobre o mundo transtornado de Genet, é corajosíssima. No momento em que a homofobia está com seus dias contados, o palco mostra a crueldade do homem entre os iguais de seu gênero. O macho se conduz com intrepidez em qualquer de suas opções sexuais. Permite-se, não conhece limites ou restrições. Avança furiosamente, até conseguir o que deseja.

E quando o macho é gay, é mais macho ainda. Carrega consigo a força do homem e o devaneio da mulher - é uma combinação explosiva e irresistível. Madame explode de amor e ódio. Divina idem. Entendo as várias mulheres que se apaixonam por gays. Sua figura e sua alma tem o melhor de cada um dos sexos.

Jean Genet retratou o submundo em que viviam os homossexuais desabonados de sua época. Condenados a marginalidade, a vergonha, ao desprezo, uniam-se aos ladrões e aos cafetões. As excecões eram os ricos senhores, finos e de boas famílias, que casavam-se com castas mulheres e soltavam a franga madrugada afora. Excessos à parte, ainda vemos isso por aí.
Basta dar uma volta na Atlântica à noite - carros de luxo atrás de travestis.

A maldade humana sobrevive às décadas. Abandonado pela mãe, Jean Genet jamais curou-se dessa dor. Roubou para comer e depois por gosto, para transgredir e vingar-se do destino. Encontrou maior satisfação na transgressáo; ser homossexual em seu contexto era também uma trangressáo, e esta, bastante prazerosa. Muito melhor que as regras engessadas de uma sociedade burguesa, segregadora, preconceituosa e cega.

Salvo da prisão pelo seu talento, reconhecido por Jean Paul Sartre (apenas!), que abraçou sua causa. Reconheceu nele a chama do gênio, e ao contrário dos anjos, os gênios devem viver.

Genial Genet, Geniais Ciclomáticos e Genial Ribamar Ribeiro.


"Jean Genet, escritor maldito, provocou as mais diversas reações sobre sua personalidade e obra. Condenado, por crime de morte, à prisão perpétua, obteve o perdão em 1948 graças aos esforços de Jean Cocteau e Jean-Paul Sartre, rendidos a seu talento literário. Em 1983 foi-lhe concedido o mais importante prêmio literário francês, o Grande Prêmio Nacional. Em seus romances e peças de teatro, cujos protagonistas são quase sempre delinqüentes e marginais, Genet abala a consciência social e a fragilidade do sistema de valores da sociedade burguesa. Dentre suas obras destacam-se Nossa Senhora das Flores (1944), Querelle – Amar e Matar (1947), que foi levado ao cinema em 1982 por Rainer Werner Fassbinder com o título Querelle, e Diário de Um Ladrão (1949), e as peças de teatro Haute Surveillance (1949), O Balcão (1956), Os Negros (1958) e Les Paravents (1961)."

2 comentários:

  1. Bettina, obrigado pelo carinho, pelas palavras e pela clareza de sua visão. É por pessoas como vc que me deixa com mais certeza do quanto tudo vale à pena. Muito obrigado. Renato Neves (a Madame).

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  2. Renato, o carinho e admiração são sinceros!! Você é fantástico....

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