Planetário por Acaso
Rio dos acasos
"Os Anjos devem morrer", com os Ciclomáticos, por Ribamar Ribeiro
Os anjos Renato Neves, Getúlio Nascimento,Julio Cesar Ferreira, Carla Meirelles, Mauro Carvalho
Foto: divulgação
A descrição da peça, segundo o próprio grupo: “Com um cabaré-teatro decadente como cenário, o espetáculo conta a história de Madame, Divina, Mignon, Mimosa III, Nossa Senhora das Flores e Genet. Tudo isso envolto em muito suspense sórdido, em que todos querem ser Madame. Madame não tem sexo, Madame não tem cor, Madame não tem idade. Todos são como anjos. E os anjos devem morrer. O enredo traz uma trama biográfica ficcional sobre o universo de Jean Genet, pela visão do diretor e dramaturgo Ribamar Ribeiro”.
Senhores eu vi. Foi por acaso, fomos para assistir uma comédia.
Chegamos ao Teatro Maria Clara Machado, no Planetário. Um frio de doer os ossos, e eis que a comédia tinha saído de cartaz. O Teatro oferecia gentilmente este espetáculo por simbólicos cinco reais. Entramos.
Vimos um cabaré de lacraias.
Criadas a pão e fel por Madame.
Madame, travestida, corrompida. É a rainha mãe, corrompe, maltrata, castiga, idolatra.
Madame é uma tirana.
A dona do bordel, a dona cruel. Mantém a empregada humilhada, e adula a estrela do show. Todas desejam o mesmo homem, carne e osso de homem, barba de homem, cabelos de homem.
Todas desejam gerenciar o bordel.
Há nus. Há agressóes. Palavróes.
Chocam e assustam. São caricaturas viáveis de tantos tipos por aí. A peça contará com todo talento do mundo, do texto ao elenco, direçao, figurinos. Foram os cinco reais mais valiosos de minha vida. Um ticket para o universo louco e mau de Jean Genet.
Para inserir sua platéia no clima noir o ambiente é escuro mesmo, e o espectador é mantido em suspense. Os diálogos exigem toda a sua atenção. São rápidos, pesados, confessam alianças, amores, desamores, furtos, assassinatos. Misturam português e francês.
Os atores eram para mim desconhecidos, desculpem, há tanto a conhecer neste Brasil de atores divinos. Encantei-me com todos e cada um deles. Perfeitos. Getulio Nascimento é uma moça, um anjo sem sexo, olhos de moça ou de anjo, náo sei, mas de fino trato e péssimas intenções. Madame, o gordo, é opulenta, é rica, é insuportável. Mignon é um canalha de primeira. A empregada, coitada, vive na ilusão subserviente de prestar serviços pessoais a Madame. Madame a despreza. Madame ama Mignon, que ama Divina, a estrela, que ama o Anjo, que náo ama ninguém.
Repetem o refrão - Madame é linda, madame é boa, madame é meiga. Mentem. Covardemente tramam seu fim. São todos anjos endemoniados, certamente. Enfeitiçam com sua exposição das feridas, e afloram nosso sadismo: ficamos hipnotizados pela baixeza a que poderemos chegar.
A montagem do grupo "Os Ciclomáticos", sobre o mundo transtornado de Genet, é corajosíssima. No momento em que a homofobia está com seus dias contados, o palco mostra a crueldade do homem entre os iguais de seu gênero. O macho se conduz com intrepidez em qualquer de suas opções sexuais. Permite-se, não conhece limites ou restrições. Avança furiosamente, até conseguir o que deseja.
E quando o macho é gay, é mais macho ainda. Carrega consigo a força do homem e o devaneio da mulher - é uma combinação explosiva e irresistível. Madame explode de amor e ódio. Divina idem. Entendo as várias mulheres que se apaixonam por gays. Sua figura e sua alma tem o melhor de cada um dos sexos.
Jean Genet retratou o submundo em que viviam os homossexuais desabonados de sua época. Condenados a marginalidade, a vergonha, ao desprezo, uniam-se aos ladrões e aos cafetões. As excecões eram os ricos senhores, finos e de boas famílias, que casavam-se com castas mulheres e soltavam a franga madrugada afora. Excessos à parte, ainda vemos isso por aí.
Basta dar uma volta na Atlântica à noite - carros de luxo atrás de travestis.
A maldade humana sobrevive às décadas. Abandonado pela mãe, Jean Genet jamais curou-se dessa dor. Roubou para comer e depois por gosto, para transgredir e vingar-se do destino. Encontrou maior satisfação na transgressáo; ser homossexual em seu contexto era também uma trangressáo, e esta, bastante prazerosa. Muito melhor que as regras engessadas de uma sociedade burguesa, segregadora, preconceituosa e cega.
Salvo da prisão pelo seu talento, reconhecido por Jean Paul Sartre (apenas!), que abraçou sua causa. Reconheceu nele a chama do gênio, e ao contrário dos anjos, os gênios devem viver.
Genial Genet, Geniais Ciclomáticos e Genial Ribamar Ribeiro.
"Jean Genet, escritor maldito, provocou as mais diversas reações sobre sua personalidade e obra. Condenado, por crime de morte, à prisão perpétua, obteve o perdão em 1948 graças aos esforços de Jean Cocteau e Jean-Paul Sartre, rendidos a seu talento literário. Em 1983 foi-lhe concedido o mais importante prêmio literário francês, o Grande Prêmio Nacional. Em seus romances e peças de teatro, cujos protagonistas são quase sempre delinqüentes e marginais, Genet abala a consciência social e a fragilidade do sistema de valores da sociedade burguesa. Dentre suas obras destacam-se Nossa Senhora das Flores (1944), Querelle – Amar e Matar (1947), que foi levado ao cinema em 1982 por Rainer Werner Fassbinder com o título Querelle, e Diário de Um Ladrão (1949), e as peças de teatro Haute Surveillance (1949), O Balcão (1956), Os Negros (1958) e Les Paravents (1961)."
Bettina, obrigado pelo carinho, pelas palavras e pela clareza de sua visão. É por pessoas como vc que me deixa com mais certeza do quanto tudo vale à pena. Muito obrigado. Renato Neves (a Madame).
ResponderExcluirRenato, o carinho e admiração são sinceros!! Você é fantástico....
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